quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

sobre 2011

Vejamos.
Junto a 2004, 2008 e 2010, um dos piores anos da minha vida. Só não sofri do tanto que sofri em 2008 porque passava todos os dias da semana fora e conseguia manter minha mente ocupada com outras questões. Foi o ano em que percebi que a solidão que eu sinto provavelmente não tem cura, só tratamento - que, por sinal, pode ser bastante eficiente e que funciona como um analgésico ou anestésico do problema. Pensei, pensei, e pensei bastante sobre tudo o que me faz sentir sozinha, pensei e repensei se vale a pena continuar viva, questionei por diversas vezes o motivo e o valor da minha existência, entrei em contradição interna outras diversas vezes, percebi que a dualidade que existe dentro de mim é bem maior do que eu pensava, fiquei de luto muito tempo por muitas perdas.
2011 também foi um ano de intensas leituras, reflexões e questionamentos, que trouxeram consigo um doloroso amadurecimento. Muitas brigas e reconciliações. Com o passar do tempo, percebi quem realmente era importante pra mim - e também consegui perceber para quem EU sou importante. Repensei muitas vezes meus valores, minhas atitudes, minhas convicções... abri mão de algumas crenças, questionei minha intolerância e acredito que mudei em muitos aspectos.
E aliada a tudo isso, aquela imensa preocupação com o meu futuro e com o vestibular.

All in all, o ano foi uma merda e a única coisa que me anima para continuar viva em 2012 é que não dá pra piorar. (aliás, esta passou a minha filosofia de vida: sempre pode ficar pior, então anime-se com o fato de que qualquer melhora é alguma coisa)

E para o que der e vier, IN OMNIA PARATUS. Vou tentar encarar tudo de cabeça erguida.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

náusea

A náusea.
E tome remédios, faça terapia, entre na mais atualizada rede social. Isso tudo pode mascarar, mas não deleta a náusea. A náusea é um ser superior, que me olha de cima pra baixo, que gosta de me manter sob seu controle, que gosta de me puxar pelo cabelo e impedir-me de fazer qualquer movimento para dela escapar.
Quando ela ataca, fico impotente, apática e ao mesmo tempo infeliz. Estranho como fisiologicamente ficamos nauseados quando há um excesso dentro de nós - mas essa náusea psicológica alcança seu pico quando eu estou o mais vazia possível - vazio esse obtido depois de tempos e tempos de dar e não receber.
Mas o que ela é? Um cansaço, talvez? Preguiça, desistência sociais? Talvez tudo isso.
Só sei que ela tem estado aqui há tanto tempo que eu me esqueci o que significa não estar nauseada. Minha velha amiga - inimiga -, companheira - traiçoeira -, que definitivamente - definitivamente - está sempre, sempre aqui. E ela é astuta, quer ocupar todo o espaço dentro de mim, e se passa por consciência, por intuição, por raciocínio lógico. E é claro que todos os seus pseudo-conselhos, toda a sua pseudo-moralidade levavam a um único e óbvio objetivo: manter-me sozinha. e vazia.
Mas eu cansei, náusea. Eu cansei de você. Apesar de eu saber que você sempre vai me acompanhar - pois você é um desdobramento de mim mesma - eu decidi usar você contra você mesma. Vou vomitá-la e, com isso, fazer vários remendos nos buracos que você deixou em mim.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

solidão

- Que isso, essa é a melhor fase da sua vida!
- Não, não é.
- Você vai sentir falta de ser adolescente, vai sentir falta do colegial.
- Não, definitivamente não vou.
- Ah, pára com isso. Aproveita.
- Se com "aproveitar" você quer dizer "tornar menos insuportável", eu venho tentando fazê-lo há tempos.

Eu realmente não gosto da época pela qual estou passando. Não gosto mesmo. Eu não sirvo pra nenhum grupo, não agrado a maioria dos espécimes da minha tenra idade, não gosto das opções de lazer comumente utilizadas e só pra piorar, só pra servir de cereja do sundae, eu assumo tudo isso.
Consequentemente, sinto-me frequentemente - mais frequentemente do que a maioria das pessoas podem pensar - absurdamente sozinha. A maioria pensa que isso é fruto de uma arrogância, de eu achar que não há ninguém "do meu nível", mas não. Eu não sou ignorante e masoquista a ponto de acreditar que ficar sozinha é a melhor das opções. Não sou misantropa. Não sou sociofóbica. Não sou arrogante, pelo sangue de Cristo! Eu só me sinto sozinha.

Pare você, adolescente muito bem integrado e com uma vida social razoavelmente invejável, como você se sentiria se sentisse vontade de assistir a um filme com alguém e não conseguisse pensar em ninguém, ou não tivesse coragem de pedir pra quem você quer, por medo de ser ridicularizado do tipo "nossa, quem assiste esse tipo de filme?". Pense como é você se sentir constantemente ridicularizado - não diretamente, mas quando alguém tira sarro de algo que é realmente importante pra você, ou que realmente parece lhe fazer sentido, ou que se encaixa perfeitamente à situação pela qual você se encontra passando. Já questionei minha sanidade muitas vezes - um absurdo, pois hoje a sanidade se mede pelo tanto que você se difere do resto, porque este se anula completamente para ser, bem, o resto!
Pense como é ser o único que você conhece a ler os livros que você lê, a assistir aos filmes que você assiste, a gostar das músicas de que você gosta, a pensar nas coisas em que você pensa, a ter os mesmos questionamentos com relação à existência que você tem. Pense como é viver ininterruptamente querendo falar e pensando duas vezes. Pense como é viver com medo de dar sua opinião. E como seres humanos não vivem sozinhos, por mais que eu ame expor minhas opiniões, eu prefiro ficar quieta e ser aceita a me pronunciar e ser excluída - o que, diga-se de passagem, já aconteceu antes.

Venho praticado há muito tempo a fabulosa arte da tolerância. E eu me esforço tanto pra gostar dos outros, pra me enxergar nos outros, pra encontrar pontos em comum, e nunca parece ser recíproco. O mundo não me quer. Então eu também queria não querer o mundo.
Eu realmente, realmente queria não ligar pra tudo isso. Eu queria não me importar de ficar sozinha, queria me conformar com o fato de que provavelmente vou ser sozinha pelo resto da minha vida. Eu queria ser capaz de achar que todas as pessoas que eu conheço são sacos de merda ambulantes perdidos no caos da vida, mas eu não consigo.
Eu tento entendê-las e achar justificativas para seu comportamento abestalhado. Mas ninguém tenta ME entender e dar justificativas para o MEU comportamento. Ninguém, por UM SEGUNDO SEQUER, pára e pensa "mas por que será que ela age assim?". NINGUÉM, antes de me criticar, coloca-se no meu lugar e tenta imaginar como é.

Eu realmente já cansei. Nesse momento, estou preferindo ser apática do que miserável.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

o tempo

O tempo. O tempo escorrendo pelas minhas mãos, dançando pela superfície de um plano intocável como mercúrio à temperatura ambiente, zombando de minha incapacidade de segurá-lo, achando graça de meu desespero, e, ainda assim, seduzindo-me a ponto de me fazer querer saber qual é a sensação de tê-lo sob controle.
E ele passa. E ele passa e dança, e ele não quer saber se você está preparado para vê-lo dançar ou não, ele simplesmente vai, vai e o abandona como uma amante que deixa seu homem na cama; mas o tempo é frágil. E ele o sabe forçosamente. E ele teme e respeita aqueles que sabem moldar suas vidas a partir da fragilidade e evanescência dele, ah, sim. E esses indivíduos são aqueles que sabem aproveitar de forma certa a vida, com sapiência, que sabem que tudo tem sua hora, que não tem pressa, que o tempo é que tem que se apressar as pessoas e não as pessoas que têm que apressar o tempo, e que se deve fazer acontecer mais do que deixar acontecer. Porque o tempo zomba, o tempo ri de quem é ingênuo o suficiente pra achar que tudo vai se resolver sozinho.
O tempo é que deve se adequar às pessoas, ou as pessoas ao tempo?
O tempo é uma entidade que assusta. Eu às vezes tenho medo de como o tempo vai se comportar - ele será piedoso? compreenderá minhas necessidades? colaborará para que eu tenha qualidade de vida? ou simplesmente continuará rodando, rodando, de forma assustadora que faz-nos sentir absurdamente impotentes, inconsoláveis? juntamente a esse ritmo de vida moderna, vida essa que nos exige rapidez, fluidez, atualização e movimento constante, constante, constante, r-r-r-r-r-r-r-r-r, como se eu fosse uma máquina que pudesse ser reparada com um simples aperto de brocas e óleo nas engrenagens.
E enquanto eu dava vazão a todas essas ideias o tempo passou por mim, passou e não deixou marca nenhuma a não ser pela vaga sensação de vazio, de impotência, de ter algo nas mãos mas que o ato de tê-lo nas mãos não me é útil em nada, absolutamente nada, e eu fico aqui, no ta-ta-ta-ta-ta-ta das teclas do teclado sendo apertadas e no z-z-z-z-z-z-zumbido na minha cabeça que constantemente me diz palavras de despedida e de provocação.

Devo eu viver como se o tempo fosse acabar amanhã ou como se amanhã o tempo fosse acabar comigo?

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

(continuação)

Vinte minutos desde o golpe.
"Ora, ora, ora, Peixoto. Desde quando você é crente de que a ética não existe?", uma voz zombadora entrou na sala saída da garganta de um homem magro de dentes amarelos. "Você me dava um soco no olho direito toda vez que eu insistia em dizer-lhe isso há trinta e cinco anos."
O diretor sentiu seu corpo inteiro enrijecer ao escutar aquela voz que mais parecia um sibilo.
"As pessoas mudam, Igor. O mundo muda junto com elas. A sociedade brasileira de trinta e cinco anos atrás não sabia o que era ética ou se ela existia porque havia sido privada dela em 1964, quando nem eu nem você tínhamos idade o suficiente para saber o que significava um golpe daqueles!", e o ponto de exclamação da frase foi demarcado por o diretor levantar-se da mesa e tentar, em vão, servir-se de café.
"Droga de café...", ele resmungou baixo, enquanto constatava que não havia mais café na garrafa térmica. Suas mãos tremiam de abstinência. "Sônia, me faz café! Cadê a Sônia? Cadê o cara da papelada???!"
"O que é isso, Peixoto? Não fique tão nervoso! Sua horda de pseudo-cultos, pseudo-jornalistas e pseudo-democratas precisa de você para guiá-la por esse túnel escuro que o Brasil acabou de se tornar..."
"Igor, só porque você se vendeu para a política e se tornou um homem sem escrúpulos e rico não significa que eu o inveje por isso.". Peixoto foi caminhando até o homem, abriu a porta e apontou para fora. "E essa é uma reunião particular. Saia."
Igor por um instante pareceu abalado pela atitude firme de Peixoto, mas apenas lançou-lhe um olhar frio e se retirou. Peixoto pensou ter ouvido algo do tipo "eu tenho amigos no governo", mas deixou essa vaga frase sublimar-se de sua mente.
Pouco depois de a porta fechar-se para Igor, ela se abriu novamente. Uma mulher entrou, com os óculos tortos no rosto e pastas na mão.
"Sônia, cadê o cara da papelada e cadê o café?!"
A mulher respirou fundo e saiu, fechando a porta novamente.
"É isso, diretor!", uma voz difundida na massa de pessoas ali começou. "Em vez de falar diretamente do regime, o que nos traria o risco da censura, poderíamos falar de portas que se abrem e portas que se fecham nesse novo sistema. Como uma lista de prós e contras mais metafórica, e em vez de colocar o texto como uma reportagem comum, colocamos no espaço de editorial. Assim, estamos, mas não estamos reportando sobre o golpe."
Mais uma vez, desencadeou-se uma onda de vozes.
"Isso é absurdamente covarde"
"É a nossa única escolha"
"Metáforas? Num país com uma porcentagem absurda de analfabetos funcionais?!"
"É muito presunçoso, além do mais, quem lê o editorial?"
"Manifestos na forma de folhetins!".
Todos se calaram.
"Sim, folhetins. O jornal será composto de todos os seus cadernos habituais, mas na segunda página colocaremos o início de nosso manifesto - que será composto de nossa opinião a respeito do golpe com realismo - e todos os dias, ou toda semana, desenvolveremos o tema na forma de um romance. Se atingir massas é uma preocupação", ela continuou, ao ver pessoas tomando fôlego para protestar, "alternaremos com relação à dificuldade do texto. Complexidade moral semana sim, semana não. O que acham?"
Peixoto tentava conter o tremor das mãos. Ele estava prestes a se manifestar quando a porta foi novamente aberta. Um homem parecendo confuso, de olhos bem azuis, segurando uma maleta semi-aberta, foi empurrado para dentro, atrás dele entrou bufando Sônia, que já não usava mais seus óculos e parecia muito nervosa.
"Aqui está o cara da papelada, Peixoto! E eu não sou garçonete para trazer-lhe café!"

sábado, 17 de setembro de 2011

o Jornal do Povo

Havia gente em demasia na sala. Cinco pessoas por metro quadrado no mínimo, considerando que uma mesa gigante ocupava praticamente um terço da sala, e que quem não tinha onde se sentar devia permanecer de pé, ou na ponta do mesmo, pois aquela era uma reunião extraordinária que mudaria o destino daquela empresa. Sim, pois o Jornal do Povo deixara de ser d'O Povo havia muito tempo - pelo menos desde que deixou de ser estatal e foi comprado por um milionário dono de alguns milhares de hectares de plantação de soja.
- Muito bem, muito bem - o homem sentado a uma das pontas da mesa começou. Fracassado em su tentativa de instaurar o silêncio, recomeçou, dessa vez mais alto e agressivamente: - Muito bem, senhoras e senhores! Creio que todos aqui saibam o motivo dessa reunião.
Ele fez uma pausa dramática e passou os olhos por cada rosto presente na sala.
"Vocês sabem que há exatos seis minutos foi declarado um golpe de Estado feito pelo senhor Presidente. Ele, há seis minutos e meio, instaurou o - em suas palavras - Socing. Agora digam-me, pelo amor que vocês têm à suas mães, que vocês sabem o que é Socing."
Uma dúzia de mãos trêmulas levantou a mão. O homem olhou para eles, incrédulo.
"Como?, vocês fizeram jornalismo, filosofia e ciências sociais e não leram sobre o Socing?"
Pausa dramática.
"Sônia, demita-os e traga o cara da papelada.", ele disse à mulher sentada à sua direita.
Com a saída dos seis, as pessoas tiveram a liberdade de inalar mais oxigênio por centímetro cúbico de ar do que antes, e suspiraram aliviadas.
"Não mais perderei tempo explicando o que é Socing, visto que ninguém mais se manifestou. Agora, a pauta da reunião é..."
"Mas, senhor", uma jovem que não devia ter mais de 1,55m e com cabelos muito pretos falou, "nós estamos no Brasil, e não na Inglaterra. O nome não deveria ser... Não sei, Brassoc, ou Socrasil, ou alguma coisa assim?".
Ele encarou-a por alguns instantes. "Exatamente, moça. Sua fala será o primeiro parágrafo, depois do lead, da manchete da capa. Tente pensar em um nome melhor que esses, mas se não conseguir, usaremos Brassoc de qualquer jeito. Mais algum comentário?".
Não, a sala respondeu com seu silêncio.
"A primeira coisa que precisamos nos decidir é: do lado de quem estamos?", e, ao ver a cara descrente de alguns recém-formados em jornalismo ali, continuou "e sejamos realistas, pois a 'ética do jornalismo' deixou de existir há muito tempo.".
"Mas, senhor", um moço que ajeitava nervosamente os óculos no rosto disse, "se nós deixamos de ser uma empresa estatal há 15 anos, não há por que defendermos o governo, e, ainda por cima de tudo, devemos aproveitar a nossa liberdade 'plena', pois se o senhor Presidente levar a termos literários, literais e fiéis o Brassoc, então começaremos a ser censurados em pouco tempo".
Um muxoxo de aprovação e concordância com o que o moço disse percorreu a sala.
"Você tem um ponto válido, filho. Você se esqueceu apenas de uma coisa: jornais já foram censurados antes, e nem por isso eles deixaram de divulgar propagandas anti-governo".
"Mas qual porcentagem da população entenderia as mensagens implícitas anti-governo contidas em nossas reportagens banais? Esse é o Jornal do Povo, senhor, e deveríamos dar ao povo o que o povo tem de saber", disse uma moça conhecida por achar que toda discussão é uma briga entre o certo e o errado, e não um conflito entre duas opiniões diferentes. Depois de seu comentário, várias outras vozes irromperam da sala, algumas falando mais alto, outras tentando se esconder atrás dessas vozes.
"Se for assim, podemos nos declarar desempregados, pois o governo acabará com a empresa assim que farejar um fagulha de insatisfação!"
"E o que o dono da nossa empresa dirá? Ele pode nos demitir se nossa postura não lhe agradar!"
"As pessoas já têm conhecimento desse golpe? Elas têm noção do que isso representa?"
"Qual! Devíamos considerar também que a maioria simplesmente não liga para o que acontece ou deixa de acontecer em Brasília!"
"Por outro lado, se nós fizéssemos propaganda positiva do governo, suas rédeas para conosco ficariam mais frouxas"
"Mas a imprensa deve denunciar a realidade, e não encobri-la!"
"Se eu me envolver nisso e isso desagradar ao governo, vou ficar com meu histórico manchado pelo resto de minha vida e nunca mais vou arranjar emprego!"
"Nós devemos expor a verdadeira realidade, mostrar ao povo o que significa Socing ou Brassoc, eles têm o direito de saber no que o país deles vai se tornar!"
"Eles tinham o direito."
"Ora, SEJAMOS REALISTAS!". O brado do diretor acalmou a sala. "Vocês estão pensando eticamente! Não existe ética. Cidadãos, há alguma ética em dar um golpe de estado ignorando o princípio da democracia e outorgando uma nova forma de controle estatal sobre as pessoas?"
É, aquilo devia ser pensado.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

discursos em javanês

- Pobre Bola-de-Neve. Pobre Goldstein. Pobre Jerônimo, pobre José, pobre Escobar. - Suspirou. - Tenho dó de vocês. Não por... vocês, mas por o que vocês representam. E vocês sempre acabam levando a pior.
Mais um suspiro.
Aquela noite especificamente estava com uma aura diferente. Podia ser efeito dos relaxantes, podia ser porque era a primeira noite de chuva em muitas semanas, podia ser porque acabara de ler livros e poemas e textos que a deixaram demasiadamente embriagada de pesar, mas aquela noite teve alguma coisa de diferente.
Tchaikovsky começou a tocar. 1812 Overture. Clássica representação de resistência. A trilha sonora perfeita, como já insinuou V, para uma revolução, mas que não necessariamente envolvesse uma explosão de um prédio público, pensou.
Começou a imaginar muitas cenas. Revoltas, cartazes, gritaria, hipertensão, tiros, tochas, tridentes, cachorros, todo tipo de armamento distribuído em muitas infantarias. Sim, seria fantástico conseguir mobilizar tamanha multidão para um propósito plausível. Todos lá, exercendo sua "liberdade de expressão", exigindo melhores condições e mudanças na atual situação, protestando contra a total pândega que o sistema se tornara, proclamando vergonha dos projetos sociais vigentes.
Obviamente; apenas algumas pessoas se encaixariam nas ações descritas no período anterior - seus líderes. A maioria estaria só repetindo axiomas, aproveitando o momento para gritar como animais no cio, gozando de um momento de liberdade e permissividade ao vandalismo - pois é tudo por um "bem maior" -, berrando a plenos pulmões frases repetitivas conjugadas no presente do indicativo e, falando a fria verdade, captando superficialmente ideias previamente mastigadas.
Seria um líder revolucionário apenas mais um político? Seria esse líder o professor de javanês de Lima Barreto? Seria esse líder apenas um político carismático com muita lábia e habilidade de nos mover com suas palavras melífluas? Seria ele apenas mais um manipulador qualquer, que pode não mentir, mas que omite os verdadeiros "porquês" e os verdadeiros "e depois"?
Suspirou. Mas essa manipulação por um discurso ideológico se faz necessária devido à grande indolência que assola a mente das pessoas quando se trata de ponderar-se a respeito de algo. Se uma mudança quer ser vista, uma atitude tem de ser tomada. Essa atitude, para ser maciça, precisa ter um estímulo. Esse estímulo vem de um discurso que foi feito para agradar e motivar as massas. E aqueles que detêm o conhecimento - agradar para motivar, agradar para ser seguido - são perigosos. O princípio de "pão e circo" é com certeza anterior ao Império Romano, ainda existe e continuará existindo na posterioridade.
No final, tudo fica nas mãos do melhor professor de javanês. E, como de costume, ao vencedor, as batatas.
AH, isso cansa! E a música chegava ao fim.
- Fazer o quê, Mikhail? Fazer o quê?
Olhou para a imagem do senhor barbudo e pomposo que brilhava na tela do seu computador.
- Por que vocês são sempre barbudos?, ela perguntou à imagem. Na ausência de resposta, desligou o monitor, fechou o livro e foi tomar um remédio para a enxaqueca que teimara o suficiente para conseguir voltar.

domingo, 21 de agosto de 2011

palavras

E quando a riqueza de palavras da língua portuguesa se extinguir e as coisas se resumirem a boas ou ruins? E um sentimento, terá de se encaixar entre "positivo" e "negativo", apenas? E quando aquela sensação de "não ter palavras pra descrever" se tornar real e literal? E se a tendência atual da simplificação de, em sua maioria, adjetivos, tomar proporções inimagináveis e a nossa língua começar a cada vez mais perder palavras?
Poderemos considerar por finado o trabalho de escritores e psicólogos. Rimas raras serão um conceito vazio, e a literatura se resumirá a textos que uma criança conseguiria escrever. Não haverá mais sentido tentar dar um nome para o que se sente porque esse nome não mais existirá. Chegar-se-á a um ponto em que as pessoas ficarão cada vez mais planificadas e previsíveis.
Portanto, eis meu apelo: não matem o português. Não transformem "pedaço" em "peda", "obrigada" em "obri" e "por favor" em "purfa". Não definam tudo como "top" ou "muito louco", e se perguntarem-lhe como você se sente, tente não responder como "ah, sei lá, sabe, tipo assim".
p.s. você é professor de gramática? não, né? então faça-me o favor de ir às favas com suas correções gramaticais.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

seus olhos

Um homem pálido, com várias tonalidades de olheiras, cabelos ainda úmidos, ombros tensos e os braços inertes sobre a mesa. Seu olhar vazio encarava a xícara de café a sua frente.
- Então? Você vai falar como fez, ou nós vamos ter de adivinhar e te dar uma pena muito maior do que você legalmente merece?, disse um homem de altura média, um pouco acima do peso, com o rosto muito vermelho e com uma veia no pescoço saltada, denunciando seu nervosismo.
A sala era pequena e claustrofóbica. Acho que isso pode explicar por que razões tantos segredos eram ditos ali: as paredes fazem uma pressão tão grande que você não aguenta e entrega o jogo.
- Sete tiros. Três na cabeça, três no peito, um no ventre. Três facadas. Duas no peito e uma no pulso direito. E ainda assim, nenhum sinal de estupro, diga-me, como você fez isso?
- Isso... o quê?
- Estuprá-la e não deixar rastros! Você tem pinto pequeno ou o que, cidadão?
- Eu... eu não a estuprei.
O delegado encarou-o com impaciência e frustração. Que velhaco! Que canalha! Estava ali, sentado, encarando sua xícara de café, sem nenhum sinal de remorso ou agitação!
- Então diga-me, colega. Por que tantos tiros e facadas?
- Ela... ela não sofreu. Eu a esfaqueei depois de tê-la posto para dormir.
O delegado fitou-o, incrédulo.
- Posto pra dormir?, e ele bateu com todas as suas forças na mesa. A sala inteira vibrou. Posto pra dormir?! A vítima era uma moça decente, nunca havia feito mal para ninguém, ela, entre muitos, merecia viver e continuar com seu bom trabalho! Você tira a chance da sociedade de aprender com uma pessoa admirável, e você a pôs pra dormir? Você tira uma noiva e uma mãe, e você a pôs para dormir?! Você a assassinou, brutalmente, e a estuprou! Você é um assassino, problemático, psicótico, mais por ter matado justo essa pessoa do que por ter de fato matado alguém!
O homem fechou os punhos com muita força. Fechou os olhos. Levantou a cabeça com calma e olhou fundo nos olhos do delegado, que estremeceu. Mesmo num olhar tão frio conseguia-se captar um relance de infantilidade e insegurança.
- Eu não a maculei. Eu... eu não faria isso com ela.
O delegado virou-se para a parede que continha um grande espelho e jogou os braços para cima, num sinal de rendição. Ouviu-se um barulho e ele saiu pela porta. O homem continuava com os punhos cerrados, completamente quieto. O delegado encontrou-se com os outros policiais, observando o homem através do espelho.
- Ele não vai falar mais nada, Roberto, o delegado disse, limpando a testa com um lenço.
- Eu já esperava isso. Roberto tinha sua testa franzida e segurava o queixo com a mão esquerda. Foi um crime passional, Carlos, assassinos desse tipo geralmente são ou já foram obcecados por suas vítimas; são completamente psicóticos, isso quando já não foram oficialmente diagnosticados com algum distúrbio...
Uma moça conservava-se quieta, no fundo da sala. Tirava, colocava e retirava a tampa de sua caneta. Tinha seus cabelos muito pretos presos em um rabo-de-cavalo baixo e visivelmente feito com pressa.
- Sabem; ela começou; eu dei uma olhada nas fotos da cena do crime e nos relatos de conhecidos desse homem e da vítima... E isso não me parece um crime passional qualquer. Quero dizer, parece que aconteceu todo um ritual. Vocês não percebem que os tiros e facadas foram em lugares previamente escolhidos e que provavelmente têm um significado? Por que outro motivo ele daria três tiros na cabeça, três no peito e apenas um no ventre? Pensem. Ela pode ter feito alguma escolha racional e emocional que o desagradou. Ou ela seguiu um caminho diferente do dele. E a facada no pulso direito, a vítima estava noiva, e o anel de noivado usa-se...
-... na mão direita; Roberto completou.
- Eu realmente acredito que ele não a estuprou, a obsessão dele por ela era provavelmente algo mais espiritual, mais platônico, algo até maternal, talvez? Pelo que eu li, ela era pediatra, e ele era seu faxineiro havia mais de cinco anos. O que a secretária disse foi que ele demitiu-se depois de encontrar a vítima tendo relações com o noivo no banheiro do consultório.
- E a vítima tinha quantos anos mesmo?
- Vinte e sete. Se formos pelo raciocínio de que o assassino projetou na vítima uma imagem de mãe, ele provavelmente decepcionou-se depois de vê-la com o noivo, pois isso sujaria a imagem que ele havia feito dela.
Ela parou de falar e observou as feições de Roberto e de Carlos. Ambos pareciam extremamente absortos em seus pensamentos. Ela mentalmente sorriu satisfeita por ter conseguido impressioná-los.
- Pode ser, Fernanda. Pode ser. Mas nós não podemos ficar só no "pode ser", temos de extrair a verdade do homem.
- Posso falar com ele? Sim?
Ela saiu da sala, entrou naquela claustrofóbica e sentou-se na frente de homem.
- Que coisa horrível pra se fazer, certo?
Ele encarou-a. Aquele quê de infantilidade estava ali de novo.
- Quero dizer, fazer aquelas coisas com o noivo no banheiro do consultório? Isso não é coisa que uma mãe devia fazer. E se as crianças vissem? Na verdade, ela não devia fazer aquele tipo de coisa de jeito nenhum. É repugnante.
- Ela me tratava muito bem, sabe. Elogiava o meu trabalho e sorria para mim.
Ele parou e fungou.
- Mas aí eu a vi fazendo... aquilo, sabe?! E aí pensei que se ela faz aquilo com o noivo, deve fazer com qualquer um. Eu vi que ela passou as mãos no cabelo do marido da mesma forma como ela passava as mãos nos cabelos das crianças, seus pacientes. E aí eu pensei que ela fosse que nem a minha mãe.
Fernanda olhava-o impressionada. Ela estava ouvindo muito mais do que esperava.
- E aí eu fiz o que eu tinha que fazer, né... quero dizer, ela mereceu, ela me decepcionou.
- E por que você não a estuprou?
- Porque quando é com uma mãe não é estupro, é amor. E não se mata alguém com amor.
- Sua mãe... sua mãe foi quem te disse isso?
- É, sim... Ela me amava muito.
Fernanda olhou para o espelho. Viu sua própria expressão; uma mistura de pena com repugnância. Saiu da sala claustrofóbica e voltou para aquela com os policiais.
Roberto estava com a mão esquerda no vidro e a mão direita no quadril, analisando o homem; Carlos limpava o suor da testa com o lenço.
- Não vai conseguir se livrar da cadeia, mas a pena provavelmente poderá ser reduzida se a defesa alegar insanidade mental, o que é claro que há nesse caso.
- Vamos encaminhá-lo para uma avaliação psicológica... e procurem registros que envolvam o nome da mãe dele... vamos ver se essa história é verdadeira.
Fernanda não estava realmente escutando, ainda encarava o homem. Tão perturbado, tão complexo! A escolha dos lugares para os tiros e facadas, se foi inconsciente, revela toda a sensibilidade daquele indivíduo. E se foi consciente, quão brilhante!
Balançou a cabeça, como se quisesse afastar aqueles pensamentos. O homem é um assassino. É perturbado, sim, mas é um assassino. Pode não merecer, mas precisa de ajuda, sim. A relação de Fernanda com assassinos passionais era bem instável.
Na semana seguinte, Fernanda ficou sabendo que dois dias antes do julgamento com o júri o homem se suicidou, intoxicado de monóxido de carbono. Foi encontrado deitado na posição fetal. Seus últimos registros em seu diário diziam que ele precisava ir dormir.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

cegueira

- O que é ver?
Por essa eu não esperava. Éramos amigos havia uns dois anos e foi a primeira vez que ele me perguntou isso.
- Quero dizer, como é? Dói?
- Não, não dói, Beto. Na verdade, você não sente nada.
- Como, não sente nada? Quando eu encosto em algo cortante, eu sinto dor. Quando você... vê algo ruim, você não sente dor?
Fiquei alguns segundos hesitante. Não é que ele tinha razão? Não é que ele sabia mais sobre a visão do que eu?
- Ah, Beto... sim, quando eu vejo algo triste eu fico triste, mas não é uma dor física, é uma dor, digamos, espiritual, moral, sabe? Essa dor, se ficar muito tempo dentro de você, pode virar uma dor física, mas num primeiro momento, ver não dói.
- Mas, Carol, já ouvi tanta gente dizer que preferiria ser cego do que ver todas as misérias que existem no nosso mundo. Como você explica isso?
- Existem várias formas de se ser cego. Uma das formas é a literal, literalmente não conseguir enxergar, mas outra, a mais comum, é uma epidemia crescente na nossa geração: as pessoas se recusam a enxergar a própria realidade, e simbolicamente fecham os olhos pra tudo, entende? Você tem mais visão do que metade das pessoas que eu conheço.
- Tá, mas agora eu quero saber como é, mesmo, sabe? O que são cores? O que é ser bonito?
Eu nunca me sentira tão privilegiada por enxergar antes na minha breve existência. Só de pensar em nunca ter visto um pôr-do-sol, um céu estrelado, um sorriso, uma lágrima, pássaros voando, o vento batendo nas árvores, as mudanças de expressão das pessoas...
- Você sabe muito bem o que é ser bonito, Beto.
- Mas é diferente.
- Exatamente! É diferente! E o seu conceito de beleza é muito acima do conceito de beleza das pessoas que enxergam, pois a partir do momento que se enxerga o rosto da pessoa, a roupa que ela usa, como ela anda ou as caras que faz enquanto fala, você já tem uma pré-ideia de como essa pessoa é, você a julga, entende? Quando não se enxerga, não há outra forma de conhecer a pessoa que não seja pela conversa, e por esta, sim, pode-se conhecer alguém de verdade e dizer se ela é bonita ou... feia.
Beto bufou. Ele não parecia satisfeito com minhas respostas. Acho que ele esperava coisas mais materiais e objetivas. A conversa estava sendo muito mais enriquecedora para mim do que para ele.
- Carol... eu sou bonito?
Olhei para ele. Seus olhos azuis extremamente claros encaravam o nada, o vazio, mas ele se curvava na minha direção e tinha seus joelhos apontados para mim.
- Claro que é, Beto! Você é uma das pessoas mais admiráveis que eu já conheci, sem falar...
- Não, Carol. Eu quero dizer bonito para quem enxerga.
Sim, muito bonito, inclusive. Sobrancelhas delineadas, grandes cílios, boca bem desenhada, cabelos castanhos sedosos, maxilar forte. Se ele soubesse o quão bonito é fisicamente não teria nem metade do caráter que tem. A grande tendência de hoje é de a beleza corromper imensamente as pessoas.
- Sim, Beto, mas você não devia se ligar a isso, sabe? Muitas meninas se aproximam de você só por causa da sua beleza, mas quando percebem que você é mais do que um rosto bonito e que você não liga para o quão loiras tunadas elas são, elas meio que se assustam. Sabe, Beto? Acho que a sua cegueira é um dos maiores presentes que você tem. Não só você, mas todos ao seu redor.
- Tá, Carol, mas só uma vez, só uma única vez, eu queria poder enxergar.
- Pra ver o que, Beto? Não há nada nesse mundo pra ver que você já não conheça de uma forma ou outra... claro, eu não abriria mão da minha visão, porque algumas imagens valem muito, mas não por serem imagens, mas por o que elas causam, entende? Eu acho incrível que você não precise ver o rosto de alguém pra saber como a pessoa está se sentindo, você entende?
- Mas conversa nenhuma vai me fazer ver o seu rosto.
Senti meu coração partir em dois. Quase deu pra escutar o som dos meus batimentos cardíacos acelerando. O rosto ingênuo de Beto denunciava que ele ainda não tinha captado o que eu senti ao ouvir aquela frase dele.
- Meu rosto?... por que razão você iria querer ver meu rosto, se você já viu tanto além dele?
Beto tateou pelos meus braços até colocar-se na posição certa e abraçou-me.
- Você é incrível, Carol, por que diz que sou seu único amigo?
- Ah, você não entenderia.
Enquanto me despedia dele, passei meus dedos pela profunda cicatriz que cortava meu rosto na diagonal. "Você não entenderia mesmo.".

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

sobre meu doppelgänger

Sabe aquela premissa de que se todos são especiais, ninguém o é?
Eu parti da premissa de que se há várias possibilidades de sentido para a minha vida e eu não consigo escolher é porque minha vida não tem sentido. Entendem? Eu enxergo tantas possibilidades, tantos futuros, tanto crescimento (tanto intelectual quanto humano) que me sinto intimidada por todas essas possíveis Brunas, muito melhores do que a Bruna atual, indecisa e irracionalmente infeliz.
Essa imagem de uma Bruna mais evoluída, mais sábia, mais culta, mais humana, mais tudo; essa imagem me assombra, como se fosse um doppelgänger que constantemente me segue e está comigo toda vez que devo fazer uma decisão. É como se eu me olhasse no espelho me visse em duas: o que eu sou, e essa imagem eu tendo a deturpar ao máximo possível, e esse doppelgänger, essa assombração (porque é isso que essa imagem faz: me assombra! em vez de me animar, me põe pra baixo; em vez de eu ficar feliz com todas as minhas possibilidades, eu me deixo deprimir por ter medo de fazer a decisão não errada, mas a menos certa).
E, tendo em vista a minha nova filosofia prática de tentar incorporar a essência do espírito de Poliana, tentei olhar as coisas de um outro ângulo. Eu posso não ter decidido o que eu quero fazer ou qual das inúmeras possibilidades eu vou seguir, mas isso não esvazia minha vida de sentido - na verdade, o meu objetivo de vida é justamente escolher qual sentido minha vida terá. Pois eu não acredito que a vida tenha apenas um sentido, eu acho que esse sentido muda de acordo com seu momento e suas vontades, por isso, a minha maior aspiração agora é descobrir o que eu posso fazer de melhor e como eu posso me tornar útil para alguém ou para o mundo.

[Um sentido para a vida não precisa ser algo grande, algo macro. Não é porque a pessoa não é aspirante a revolucionária que ela é corroída pelo vazio de sentido. A incredulidade no próprio sentido também não tira o sentido das coisas: o niilista pode achar que suas ações são desprovidas de um sentido, mas as pessoas ao seu redor podem discordar. O logos se encontra também em ações pequenas, como em fazer o bem ao próximo, pois quando você o faz, se sente bem com você e sente que fez sua parte. O sentido pode se encontrar em dedicar-se a uma causa, ou mesmo dedicar-se a alguém - à pessoa amada, à família, ou a você mesmo.]

Toda essa epifania teve muitos agravantes e catalizadores, e após uma pseudo-reclusão (sim, pseudo, pois a minha ideia de reclusão é ficar dias sem falar com ninguém para garantir que sua linha de raciocínio não será interrompida, mas como isso não é possível no momento, tentei fazer o máximo possível), decidi olhar as coisas do alto da montanha e apagar a infelicidade e miserabilidade que estava contida dentro de problemas muito pequenos e insignificantes comparados com os problemas que existem no mundo - um mundo muito mais real do que o meu, uma burguesinha de classe média alta metida a besta.

Meu objetivo agora é tentar ser a melhor versão possível do que eu sou; aprimorar meu ser; lapidar meu ente; aprender a fazer boas decisões e não me deixar derrubar por questões demasiadamente racionais pois, cá entre nós, o ser humano não é tão racional quanto julga ser.
E em vez de me deixar deprimir pela constante imagem da doppelgänger que me invade, vou emoldurá-la e pendurá-la na minha parede de possibilidades.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

miserabilidade

Não sou egoísta, não acho que sou deus, não sou prepotente nem me acho onipotente, mas às vezes você chega a um ponto que se pergunta o que você está fazendo aqui, agora.
É, não é? Sabe, você venceu a corrida, passou na frente de outros bilhões de metades de pessoas. Entende isso? Se outro espermatozoide tivesse passando na sua frente, ele poderia estar aqui sendo mais útil do que você. Ele poderia estar vivendo menos miseravelmente. Ele poderia ser o cara que viria a descobrir a cura do câncer, quem sabe? Todos nós deveríamos estar honrando a memória de todos esses projetos de pessoas dos quais tiramos a chance de existir.
E ainda assim, você vive a sua vida miserável, dia após dia, refeição após refeição. Você não tenta ser o melhor que pode, não tenta aprimorar suas habilidades e seu intelecto, não lapida o seu ente, você simplesmente ignora a possibilidade de que outra pessoa, no seu lugar, poderia estar fazendo coisas maiores, fantásticas! Mas ah! isso não te impede de apenas ser. Claro, não é? às vezes a bebedeira nos afeta, já dizia Drummond que essa lua, esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo, e vez ou outra temos aquela crise, aquele momento de consciência, aquela epifania momentânea e evanescente: sou eu quem estou aqui. Será que estou aproveitando ao máximo?
Mas enquanto alguns realmente pensam a respeito de dar algum valor, algum sentido à sua vida, alguns, como eu, sua miserável narradora, decidem que não há valor nem sentido em suas vidas. Alguns, como eu, chegam forçosamente à terrível conclusão de que qualquer um estaria fazendo melhor proveito do que se tem, em quaisquer condições, com quaisquer obstáculos. Triste, não? Desanimador. Claro que não pra mim, eu me conformei com essa ideia há tempos, e isso sim é o triste. Eu não deveria ter me conformado! Eu deveria ter tentado transformar essa realidade! Mas depois de travar tantas batalhas, contra mim e contra o mundo, depois de tantos ferimentos de guerra, você meio que desiste por exaustão, sabe? Depois de você tentar provar (ou iludir a?) você mesmo que sua vida tem sim um objetivo ou um sentido, vem o mundo e desprova, ou te dá motivos pra desistir, ou te faz sentir a pessoa mais fraca do mundo.
E nossa! acho que existem poucos sentimentos piores do que o vazio de sentido. Pois o vazio de sentido engloba muitos dos piores sentimentos, como o tédio, e, especialmente, o tédio dominical. Pois, sabe, a maioria dos problemas você consegue resolver com muita introspecção e batalha, porque muitos são essencialmente internos, mas o vazio existencial vem também de fora, vem do sentimento de inutilidade que é inexoravelmente produto da sua situação com sua reação a tal, e olha, é um negócio complicado de se resolver. Dá-me preguiça, muita preguiça. Dá-me medo de, no final das contas, não encontrar nada, e simplesmente descobrir (ou redescobrir, ou reafirmar) que, realmente, olha, esse negócio de uma vida com um sentido não é pra ti, não, amiga.
E olhar ao redor não podia ser mais doloroso, ver que todos têm suas ambições, ver seus personagens favoritos sucedendo no que queriam, ver quem não tinha mérito conseguir conquistar seus objetivos e você ali, observando as ondas irem e voltarem, numa estaticidade que enlouqueceria até os mais sedentários, mas que é tudo que você pode fazer!
Você não é especial. Você não é especial, você não é especial. Por mais que o capitalismo queira enfiar essas abobrinhas na sua cabeça, não se esqueça: você - não é - especial.
Doloroso, não? Essa é a fonte da minha miserabilidade. Mas fazer o quê?

quinta-feira, 28 de julho de 2011

domingo, 24 de julho de 2011

solidão

Vejo-os passando. Ouço-os conversando. Não os julgo, apenas escuto. Não opino. Entendo-os perfeitamente, mas não espero ser compreendida. Faço um comentário ou outro, irônico, e provoco risadas. Tento introduzir-me um pouco mais à conversa, mas parece que fui além do que estava sendo discutido. Recebo uma resposta cortante e me recluso novamente. Quando tempo é necessário observar até se aprender?
Eu não era nova ali, já tinha passado por isso inúmeras vezes, mas devo admitir que nunca vou aprender a me comportar dentro dos padrões e das necessidades desse grupo. Sim, é verdade que estou nesse trabalho há alguns poucos anos - quatro, para ser mais exata -, já participei de muitos ciclos e até meus empregadores já aceitaram que eu não me encaixarei perfeitamente em nenhum, mas eu continuo tentando, por ser masoquista, por ser idiota.
Eu cheguei a tentar pedir demissão, ou para ser transferida para outra área, mas meus empregadores sempre dizem que eu posso, que eu não devo negar minha habilidade para trabalhar naquela área, então os próprios me recusaram a mudança. E eu não pude fazer nada além de concordar e sair de cabeça baixa.
Mas eu não sei se sou útil. Provavelmente não. Provavelmente só estou ali para fazer volume. É fato que em trabalhos e projetos individuais eu sempre consigo impressionar meus chefes com minhas ideias, mas quando se trata de fazer uma reunião e chegar à unanimidade, minhas atitudes parecem ser todas falhas. Olham para mim como se eu fosse louca, como se eu enxergasse coisas que não existem. Pobres coitados. Eu realmente não enxergo o óbvio, porque sempre enxergo além dele! E eu me pergunto até quando, até quando essas almas se restringirão ao óbvio, ao palpável, ao fácil, ao conveniente e ao confortável? Toda grande mudança traz grandes benefícios morais, mas é tão difícil de ser fazer, precisa-se sair da zona de conforto. Sou louca por sair da zona de conforto? Sou anormal. Eu sei que sou anormal, pois o conceito de "normal" é dado pela maioria, e eu não estou nessa maioria. Mas terei de trabalhar o resto da minha vida com essa maioria, e depois de um tempo fica cansativo ser a anormal tantas vezes.
Uma vez sentei com meus empregadores e falei com eles sinceramente. De ser humano para ser humano. Perguntei a eles o porquê de toda essa tortura. Informei-os do meu vazio existencial, da minha solidão, do meu baixo moral, do meu cansaço e de uma possível desistência do melhoramento de minhas habilidades, sempre possível naquela empresa. Meus empregadores encararam-me com um misto de preocupação e compreensão.
"Sabemos por que razão você está triste", eles me disseram. "Você sente que não tem companhia". Lancei-lhes um olhar irônico. "Pelos motivos errados. Você tem de parar de exigir das pessoas o que elas não podem dar. Pare de ficar esperando, assim, sempre será surpresa. Nós sabemos que sua solidão não é física. Mas de qualquer forma, nós vamos mostrar-lhe a companhia perfeita para quando sentir-se sozinha".

E um espelho foi colocado na minha frente. "A melhor cura para a sua solidão de ideias é a introspecção".

quarta-feira, 20 de julho de 2011

o foguete

Paola deu um grande suspiro. Nada poderia tê-la preparado para o que ela iria fazer naquele momento. Por que motivo, certo? Seria tão mais fácil se todos estivéssemos prontos para tudo, mas acho que aí perderíamos a verdadeira emoção de viver. A essência da vida é isso - a imprevisibilidade. Bateu na porta e entrou.
"Lucas, meu filho, a mamãe precisa conversar com você".
O menino de olhos doces, amendoados e cor-de-mel levantou os olhos da sua construção de blocos.
"O que foi, mamãe?", ele perguntou. "Onde está o papai?". Quanta inocência exalava de cada poro daquela criança! Muito triste ele ter de tomar um banho de realidade em seus tenros 4 anos.
"É sobre isso que eu quero falar com você, meu anjo". A mãe tomou fôlego e tentou manter sua aparência forte. Ele precisaria disso agora, de muita força. "O papai não vai voltar.".
O menino piscou os grandes olhos. "Como assim, não vai voltar? Ele vai morar pra sempre no hospital?", ele voltou sua atenção para os bloquinhos. "Aquele quarto é muito triste, nós podemos levar coisas pra deixá-lo mais feliz?".
Ao ouvir aquelas palavras, ela sentiu seu coração, já partido, se esfarelar. Que menino doce! Ele realmente não precisaria ouvir isso dela agora, está tão cedo, preciso arranjar alguma forma de tornar o acontecimento menos... menos o quê?
"Meu amor", ela começou a falar, com cuidado. "O papai... ele não vai mais voltar. Ele foi embora do hospital, mas ele não vem aqui pra casa, ele não vai mais continuar... aqui. No nosso mundo."
"Como assim? Ele não vai mais ficar aqui, com a gente?"
"Ah, não, meu anjo. O papai sempre estará com a gente. No nosso coração. Mas nós não vamos mais poder vê-lo ou tocá-lo.". Um grande suspiro. "Aconteceu uma coisa com o papai que nós chamamos de morte. Isso, para algumas pessoas, significa que ele desapareceu pra sempre. Mas pra nós significa que... que ele já realizou grande parte dos sonhos dele, e foi decidido que ele precisava ir embora, pra muito, muito longe... Ele te amou muito, e vai sempre te amar, mesmo de lá longe, no lugar onde ele está agora. E antes de ir viajar, ele me pediu para nós não o esquecermos, porque enquanto nós nos lembrarmos dele, ele vai estar, de certa forma, aqui, conosco..."
O menino pareceu digerir bem a ideia da viagem. Continuou com seus bloquinhos. O problema viria depois.
"Mas, mamãe... eu vou poder sentir o papai no meu coração, mas... eu não vou mais poder jogar futebol com ele, vou?"
"Não, meu amor, não vai". Como ela poderia falar sobre morte com uma criança de quatro anos? É tão cruel! "Um dia todas as pessoas fazem essa viagem que o papai teve de fazer. Um dia eu vou fazer, e você também. Algumas pessoas partem antes do que deveriam, como o papai, e só o que podemos fazer é torcer para que isso não aconteça conosco e torcer para que nós alcancemos a felicidade antes de ir. O papai alcançou a felicidade que ele queria. Ele disse que ele só ficaria em paz e ficaria contente em partir se você crescesse bem e se tornasse uma boa pessoa. E apesar de não estar aqui com a gente, eu tenho certeza que ele vai olhar por você, por nós, e que ele vai ficaria muito orgulhoso de você de lá onde ele está..."
"Mas como ele pode me ver, mas eu não posso vê-lo?"
"Porque ele já passou por aqui. Pense nisso como se você estivesse andando em um corredor escuro, que vai se iluminando conforme você vai andando. Você só é capaz de enxergar os lugares por onde já passou, os lugares que você já conheceu, pois há várias luzes acesas, mas você não consegue ver aonde você está indo. Você não sabe onde esse corredor termina, nem o que tem ao longo dele. Entende?"
"Sim, mamãe."
Ela suspirou, aliviada. Afinal, não tinha sido tão difícil assim.
"Mamãe... você acha que ele pode nos escutar?"
Melhor responder o que vai fazê-lo se sentir melhor. É só uma criança. "Acho que sim, meu anjo".
"Então toda noite antes de dormir vou contá-lo sobre meu dia. Assim, o desejo dele de me ver crescer e me tornar um bom garoto vai se realizar antes, não acha? Porque eu vou estar sempre contando tudo pra ele..."
A mãe abraçou-o, com força. Aquele pequeno ser que era parte do ser que a deixara. O jeito meigo de olhá-la ele herdou do pai.
"Nós dois vamos sentir muito a falta dele, não é, meu anjo?"
"Você está chorando, mamãe?" Lucas encarou-a. "Não se preocupe. Eu posso tentar fazer sua refeição favorita que o papai faz. Vai ficar tudo bem."
Sim, ficaria tudo bem. Paola reparou nos bloquinhos do filho. Ele havia feito um foguete.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

trânsito

"E agora, notícias do trânsito comigo, Tatiana! Hoje os marronzinhos estão concentrados no fim da Presidente Vargas, em frente ao Ribeirão Shopping, na Independência, próximo à FAAP e na Francisco Junqueira, próximo ao Epicurista. O trânsito encontra-se pesado na rotatória da Fiusa com a Independência, e, como sempre, procure evitar a Nove de Julho na hora do rush, entre seis e sete horas da noite. A avenida Caramuru está com alguns trechos interditados com a operação Tapa-Buraco, antes tarde do que nunca, e um acidente aconteceu na Garibaldi com a Campos Salles, deixando o trânsito muito lento num raio de três quarteirões. Esses foram os avisos do trânsito, comigo, Tatiana."

E o rádio continuava tocando, sem que Amanda desse muita atenção. Aquele calor saariano, a umidade relativa do ar alcançando índices desérticos e a previsão do tempo com suas notícias, com o perdão do pleonasmo, previsíveis. Nada de chuva até que a tal massa Polar chegasse ao sudeste brasileiro. Pois é. Mais um dia torturante na cidade de Ribeirão Preto.
Porque o aviso chegou tarde demais, Amanda encontrou-se parada a um quarteirão do acidente, no qual uma motocicleta (obviamente), um pedestre e um carro (que ultrapassara o sinal vermelho) casualmente encontraram-se. Enquanto bombeiros tentavam tirar o pedestre e o motorista das ferrugens do (que tinha sobrado do) carro, um policial tentava assumir o papel do sinaleiro. Sem muito sucesso, pois era uma hora da tarde e os motoristas só pensavam no prato de almoço que já deveriam estar comendo.
Ah, desligou o condicionador de ar, abriu os vidros e desligou o motor do carro. Quanta agradabilidade! Um indivíduo beócio na caminhonete ao lado do veículo de Amanda estava com os vidros abertos escutando um pagode de quinta no volume máximo (porque além de ficar surdo, queria ensurdecer os outros também). Duas mulheres brigavam estridentemente no carro atrás, e um homem no veículo à sua diagonal parecia estar exausto com a situação toda.
E isso era só mais um dia. A situação estava apenas um pouco mais caótica do que já costumava ser. A diferença para o trânsito do dia-a-dia eram os corpos queimados no asfalto, a ambulância impedindo a passagem dos pedestres (que, sem ter para onde ir, costuravam por entre os carros) e algumas buzinas a mais. Nada de muito extraordinário.
Nada de muito extraordinário? Três pessoas correndo sério risco de vida, e não era nada de extraordinário? Bom, Amanda foi condicionada a ter essa reação - na verdade, a ter essa falta de reação - em situações assim. Todos os dias somos bombardeados com notícias regurgitadas de acidentes e catástrofes e não cai a ficha de que pessoas é que morreram. Vidas foram tiradas. Mas nos foi imposto de que são só números. Alguns números a mais. Alguns corpos a mais no solo putrefato do cemitério, alguns números a menos nas estatísticas da população mundial - que logo são substituídos pelos crescentes índices de natalidade de países miseráveis.
Triste isso, não? Essa desumanização das pessoas. E isso acontece todos os dias, sem que a maioria de nós perceba. Desumanização, despersonalização, desvalorização - quase um esvaziamento da essência humana, sim?, pois é algo muito humano a necessidade de se encontrar e de formar sua personalidade. A desvalorização de vidas é uma negação do próprio instinto animal de sentir compaixão por seus próximos e semelhantes. Brutalidade! Crueldade!
Mas puta que te pariu, pagodeiro! Faça um favor ao mundo e feche os vidros!
Algum sinal de movimento? Acho que não. Amanda olha pelo retrovisor. A fila de carros estendia-se por 5 quarteirões. Por que razão o policial não desiste de ser sinaleiro e vai dar sinal cinco quarteirões para trás, indicando para as pessoas pegarem outro caminho? Santa incompetência brasileira. Santa incompetência civil!
Impressão ou o carro da frente se moveu? Sim! Amanda liga o carro e aproveita a oportunidade para sair daquele inferno, inferno de reflexões, de remorso, de pesar em que ela tinha estacionado ao dar-se conta da situação em que se encontrava. Deu a partida e acelerou para fora de lá.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Tenho muito medo de ser bem-resolvida com minhas questões e dores.
Tenho muito medo de, uma vez resolvida, perder toda a minha inspiração pra escrever, perder meus objetos de estudo e reflexão, e me tornar só mais um ser despreocupado e estupidamente feliz andando por aí.
Não que eu tenha medo de ser feliz. O objetivo, o sentido da minha vida é a busca pela felicidade, não em um sentido hedonista, mas no sentido de fazer algo que me preencha. E acredito que só é possível descobrir aquilo de que você gosta quando se tem bem definido tudo de que você não gosta. Só se pode saber o que quer quando se sabe o que não quer. Mas eu tenho medo de definir tudo, definir exatamente o que eu quero e o que eu não quero, porque e aí?, o que eu faço depois? Enquanto estou cercada pela indefinição, ainda tenho muitos leques de possibilidades, muitas alternativas, muitas reflexões para fazer, tenho muito o que discutir e argumentar. Mas a graça da dialética é a troca de ideias e informações, e ter uma opinião já formada e bem resolvida acerca de tudo torna o ato sem graça para os dois lados.
Outro dia assisti a um episódio de House em que justamente essa questão é trabalhada. House tem medo de fazer terapia, de resolver seus problemas e de se livrar da dor na perna porque acha que, feito isso, ele perderia seu diferencial como médico. Eu também sinto que, sem minhas dores, eu poderia perder minha habilidade de reflexão. Eu fiquei com a impressão, depois de começar a fazer terapia, que eu não tinha mais sobre o que escrever. Visto que a escrita é um dos meus únicos talentos que eu mesma reconheço e que até aprecio, deparei-me com uma problemática.
O sofrimento nos faz, nos obriga a crescer. Quando não há mais sofrimento, como se cresce? Não que eu acredite que é possível viver sem sofrimento - não é, mas quando muda-se as formas de lidar com tal, os resultados também mudam.

Inutilidade é o pior sentimento do mundo.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

a rotina de uma criança

Estava lá, feliz, com uma mochila contendo brinquedos, livrinhos, cadernos de colorir e vários lápis-de-cor, uma mão colada na mão do pai e a outra na mão da mãe. Até aquele momento sua existência tinha sido muito curta. Sabia basicamente de três coisas: o pai sorri de um jeito diferente para a mãe, não devo sair de perto de quem me ama caso contrário posso ser pego e devo sempre guardar os lápis-de-cor no estojo depois de usá-los. É claro que já tinha aprendido muitas outras coisas, mas essas outras tinham pouca aplicabilidade ou não faziam muita importância no final das contas.
Seguiu a mãe e o pai enquanto entravam numa loja muito, mas muito grande, com muitas luzes, muitas máquinas, muitas cores, nossa! que tontura. Acordou do devaneio quando sentiu o pai puxando-o pela mão.
"Essa loja tem muitos livros que você um dia vai ler, Tiago", ouviu o pai falando-lhe. Passeando por lá, viu que realmente a loja tinha muitos livros. Uns com capas feias e sem-graça, sem falar da grossura.
Foi para a parte mais chamativa e começou a entreter-se com um livro sobre espiões.

"Agente Tiago", ele ouviu, "precisamos de você na seção de jogos".

Tiago levantou os olhos. O lugar era grande e metálico. Levantou-se, tirou seu GPS portátil - tecnologia de ponta de sua empresa supersecreta - do bolso do casaco e encontrou-se. Saiu andando e virou no primeiro corredor à sua direita, cuja porta de acesso encontrava-se arrombada. Estava frio, sua respiração estava acelerada, e apenas seus batimentos cardíacos e seus passos ecoavam na escuridão. Tiago acionou a lanterna de seu relógio e prosseguiu.
A cada passo que dava, mais frio ficava. Continuou andando - e, poucos passos depois, o som dos seu caminhar foi ficando diferente, como se ele estivesse pisando em alguma coisa. Com um pouco de receio, apontou a luz da lanterna para seus pés e - argh! Será que... será possível? Não pode ser! Tiago pegou uma amostra da substância em que pisava e provou -a. Sim! Como pensando! Marshmallow derretido! O caso é pior do que eu imaginava. O indivíduo não só fez um estrago imenso, como também desperdiçou todo esse material de conteúdo imprescindível para a sobrevivência. Monstro! Perturbado! Doente!
Tentou segurar a respiração para não ser ludibriado pelo aroma doce e queimado do marshmallow. Ele devia prosseguir, não importava mais nada.
Acabou-se o corredor. Mais uma porta. Alarme destruído - hm, muito interessante, o indivíduo desabilitou o alarme com várias pancadas seguidas de curto-circuito causado por refrigerante de cola -, porta arrombada... e, pela ausência de pegadas, supõe-se que o homem está lá dentro ainda. Entrou. Era uma sala como o resto da construção - metálica, sem janelas, com condicionadores de ar... o diferencial era o grande cofre, que continha as versões mais novas e as vezes inéditas de jogos para computador ou videogame. Tiago respirou fundo e conteve uma lágrima - estar ali era muito emocionante.
Muita tensão. Tiago armou-se com shampoo Johnson's Baby - chega de lágrimas? questionável - e apontou a lanterna para dentro do cofre.
"Agente Tiago, CI 2004, você vem comigo por violar leis de invasão de propriedade privada e desperdício de material alimentício". Sem resposta. "Estou armado. Saia pacificamente ou terei de agir."
Uma sombra começou a sair do cofre. Estava coberto de marshmallow e tinha vários jogos nas mãos - todos danificados. Tiago não conteve sua expressão de indignação. Saiu em disparada na direção do homem, que permaneceu ali parado, sorrindo. Foi correndo, cheio de raiva, chegava mais perto, mais perto, até que escorregou no marshmallow e foi derrapando ao encontro do homem, que também estava armado - com bombas de legumes.
Seu final era inexorável. Tiago viu sua vida, tão curta, passar pelos seus olhos, lembrou-se do bolo que devia ter comido, lembrou-se da mãe e sobre como ele esquecera de entregar-lhe o cartão que fizera para ela...
Caiu. O homem foi aproximando-se.
"Tiago.", sua voz era maligna. Mas familiar. "Tiago..."

"Tiago?", era seu pai. "Tiago, filho? Você está bem? Estou te procurando faz muito tempo, até que você passa correndo por mim, e cai, de repente! Está tudo bem?"
Tiago suspirou. "Não, pai. Eu não consegui pegá-lo." E agora, quem terminaria a missão? Ele seria motivo de piada na empresa, escorregou no marshmallow... que vergonha.
"O quê?", o pai parecia não entender a seriedade da situação!
"Nada, pai. Eu cuido de tudo depois". Ele deu as mãos para o ingênuo pai e os dois foram ao encontro da mãe.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

união

Silêncio. Não do tipo constrangedor, nem do tipo questionador, nem do tipo ensurdecedor. Só o puro silêncio, sem nenhuma interpretação, podendo ser analisado como uma pausa entre notas.
- Você não vai me perguntar mais nada?
- Não. Não preciso saber mais nada pra concluir que você é absurdamente perturbada. Aliás, eu comecei a suspeitar disso quando vi você entrando. Apesar do seu olhar penetrante e da sua pose ferina, algumas coisas te denunciam, como suas unhas por fazer, seus sapatos gastos e seu cabelo por pintar. Se você vivesse inteiramente por essa vida, sua apresentação estaria impecável.
Luana surpreendeu-se mais uma vez. Torceu a barra do seu robe com as mãos e mordeu a língua.
- Você tem alguma ideia acerca do motivo de isso acontecer com você? Quero dizer, essa quebra dentro de você...
- O que é você? Um psicanalista? Eu não sei e não quero saber.
Victor olhou para baixo, compreensivamente. Aquele ataque fora só uma forma de defesa.
- Sabe, minha mulher diz que eu sou um babuíno que não consegue controlar seus impulsos sexuais. Não sei por que ela começou a falar isso, nunca dei motivos para tal, mas uma mulher infeliz consegue achar impurezas em qualquer lugar, e de certa forma...
Victor ia falando, mas Luana sentia como se tivesse sido sugada para outra dimensão. Uma dor de cabeça insuportável e um bombardeio de memórias haviam tomado conta de sua mente. Ela queria gritar, queria correr, jogar-se de cima do prédio, bater sua cabeça contra a parede para fazer tudo aquilo parar, mas seu corpo só respondeu àquilo com um súbito desmaio.
Uma criança sorrindo, de rosto conhecido - um dos alunos de Luana. Um homem chegando - Victor. Os dois aproximando-se. Eram filho e pai. A criança corre, parecia não querer ficar na presença do pai, ela quer ser livre, fazer o que quiser. O pai coloca as mãos no rosto, visivelmente transtornado pelas atitudes do filho, refletindo se não é melhor deixá-lo fugir, vira as costas e começa a ir embora. Mas algo os impede. A criança tropeça e cai, o pai, instintivamente ao ouvir o barulho da queda, vira o rosto e o vê, sangrando, chorando, e corre em sua ajuda.
Quando estavam na iminência de darem-se as mãos, a cena muda.
A sala onde Luana dava aula. Em vez das crianças, lá estavam babuínos, e a professora usava vermelho e um decote que mostrava mais do que deveria. Ela dava aula. Um dos babuínos começa a comportar-se mal.
Quando Luana ia reprimi-lo, a cena muda.
A sala vermelha. Luana de branco, óculos e cabelos presos num rabo-de-cavalo, sentada numa poltrona, rodeada por prostitutas, ensinando-as história. Uma das moças levanta a mão para fazer uma pergunta.
Quando Luana ia atendê-la, ela acorda.

No hospital.

O barulho esperançoso do monitor que mostrava sua frequência cardíaca foi ficando cada vez mais alto, sons de pessoas andando e conversando ao longe foram ficando mais distintos, pouco a pouco ela começou a ouvir os barulhos da cidade até que, por fim, abriu os olhos.
Viu uma enfermeira se aproximando.
- Ah, você acordou! Antes do previsto, que bom! Achávamos que você só ia acordar daqui uns três ou quatro meses.
- O quê? Faz quanto tempo que eu estou aqui?
- Dois meses. Pelo que sei, você sofreu grande estresse e seu cérebro meio que entrou em curto-circuito. Você se desligou, garota, entrou em coma. Que bom que foi socorrida a tempo, o seu marido estava super preocupado...
- Quem?
- Seu marido, Victor. Foi ele quem te trouxe aqui, lembra?
- Meu... marido?
Victor entra na sala, com uma expressão ansiosa e cabelos amassados de quem tinha acabado de acordar.
- Fui bipado, me disseram que estavam monitorando a atividade cerebral e que ela estava se normalizando e...
Os olhos de Victor encontraram os de Luana. Ele prendeu sua respiração um instante.
- Minha garota, você acordou!, ele saiu tropeçando e caiu aos pés da maca de Luana, segurando sua mão. Você se lembra do que aconteceu?
Luana acenou negativamente com a cabeça.
- Não tem importância, olha, olha quem veio aqui te visitar... Olha, Tiago, a mamãe acordou!
Um menino de aproximadamente 6 anos foi entrando timidamente no quarto. Cabelos louros, olhos cor-de-mel, suas mãozinhas torcendo a barra da camiseta.
- Mamãe, você dormiu tanto tempo...

Ao ver esse rosto, ao ver o rosto de Tiago e olhar para os olhos cor-de-mel de Victor, tudo atingiu Luana de novo. Ela lembrou-se de conhecer Victor na faculdade e casar-se com ele alguns anos depois, de começar sua carreira de professora, de ter um filho, de começar a ter lapsos momentâneos e perda de memória recente, de ir a um psiquiatra que diagnosticou-a com um certo transtorno de personalidade, lembrou-se de começar a surtar com sua vida perfeita com Victor, de dar aulas para seu próprio filho, de começar a irritar-se com nada, de começar a sair a noite, de arrumar um escape para toda sua bilateralidade, de Victor apoiá-la e encontrar-se com essa outra personalidade e ajudá-la a se recuperar... Tudo isso atingiu-a em alguns milésimos de segundo, mas, dessa vez, não causou um desmaio.

- Você está bem, meu amor?, a voz de Victor a trouxe de volta.
- Estou, sim... acho que agora estou bem.

Tiago sorriu e sentou-se no pé da maca de Luana.
- Senti sua falta, mamãe.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Victor

- Victor?, Luana perguntou, avançando a passos largos e lentos na direção do homem.
- Isso não importa, sim?, foi-lhe a resposta.
- Meu querido; ia dizendo com um sorriso malicioso; eu preciso saber que nome gritar.
O homem parecia não estar ouvindo, ocupava-se em examinar o corpo de Luana enquanto afrouxava a gravata e abria os botões da manga da camisa.
Aquele quarto. Era bem aconchegante e arrumado quando considerada sua função. Uma cama grande e com roupas de cama muito bonitas, cortinas luxuosas, uma grande janela com uma vista muito bonita apesar de ser só do primeiro andar e um espelho grande e bonito.
Sim, um espelho. E esse especialmente não era no teto - era um espelho pequeno, daqueles que só refletem seu busto, e ficava ao lado da janela. Qual o propósito daquilo?
Quartos como esses não deviam ter espelhos. As moças que por ali passam têm sentimentos confusos e deturpações de mais em sua personalidades para conseguirem aproveitar do prazer de olhar-se no espelho e sorrir ao ver sua própria imagem. Os homens que por ali passavam também abaixavam o olhar ao observarem a expressão fria e vazia do reflexo encarando-os. Resumindo, um lugar como aquele exigia uma venda para os olhos, não um objeto que induz a reflexões acerca de sua existência.
Luana sentou-se na cama e indicou com os olhos para o homem segui-la.
- Não, eu não quero sexo, disse Victor. Só quero fumar e olhar livremente para uma mulher. Sabe, não posso fumar dentro de casa e minha esposa me sufoca com tanta insegurança.
Afrouxou novamente a gravata. Acendeu um cigarro, aproximou-se dela e soltou a fumaça em seu rosto. Uma expressão sarcástica e um tanto surpresa espalhou-se pelos olhos de Victor.
- Você parece decepcionada.
- Você parece louco. Ainda vai me pagar, certo?
- Sim, madame. Como quiseres.
Apesar de ter pronunciado as palavras "louco" e "pagar" com sua característica firmeza, Luana não parecia convicta de como deveria se comportar naquela situação. Mais fácil lidar com homens neandertais e sedentos por sexo do que um que, de tão perdido, precisou procurar uma prostituta para sentir-se mais... ele mesmo. O que aquilo queria dizer? Ele não precisou ceder a seus "instintos" para livrar-se da abstinência e da claustrofobia causada pela esposa. Isso mexeu com nossa protagonista.
- Você está casado há quanto tempo?
- Dez anos. Sempre fui feliz e fiel. Acho que por isso ela começou a me sufocar de insegurança. Mulheres não gostam quando tudo está perfeito, sim? Elas têm de arrumar algum problema para a situação parecer mais real, como se desgraça fosse um sintoma da realidade. Victor riu e apagou o cigarro no dorso da mão. Luana cobriu-se com seu robe de seda cor-de-vinho pois sentiu vergonha de sua natureza ao encarar Victor. Ele parecia tão triste, e conformado, e adestrado, e ainda assim, encontrava formas razoavelmente saudáveis para liberar suas angústias.
- Então, isso é o que você faz da vida?
-... desculpe-me?
- Isso mesmo. Você é só prostituta ou isso é um tipo de segunda vida?
- Não é uma segunda vida, porque uma segunda vida significa que há uma outra vida, vivida pela mesma pessoa, e o que acontece comigo não é isso.
Victor parecia intrigado.
- O que é, então?
- Eu vivo uma vida só, e a outra parte de mim vive outra. Não tenho lembranças racionais nem sensitivas, só sei que, em certo momento, o meu eu de agora se desliga.
- E você sempre foi assim?
- Eu não lembro.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

the highest of all duties

The aim of life is self-development. To realise one's nature perfectly - that is what each of us is here for. People are afraid of themselves, nowadays. They have forgotten the highest of all duties, the duty that one owes to one's self.

Luana apreciava a perfeição de suas unhas quando ouviu o despertador. Um despertador, sim, um som inconfundível que despertaria de dentro dela a primitiva e inconsequente Luana. Despediu-se da literatura, despediu-se da água gaseificada, despediu-se de seu respeitável eu e encarnou seu próprio eu-satírico, seu alter-ego, sua outra face. Como esse processo se dá é desconhecido, o que realmente acontece com a mente e as percepções de Luana ainda é debatido.
Levantou-se do sofá e foi tomar um banho de banheira. Preparou o banho com pretensão e calma, com sais aromáticos e água bem quente. Mergulhou-se na água e concentrava-se enquanto inalava odores salpicantes e ardentes. Fechava e abria os olhos lentamente, relaxava os ombros e massageava seus pés. Tudo devia levar, inexoravelmente, a uma noite produtiva.
Enfim, pulando os pormenores das arrumação e saída, mas não omitindo o fato de ter consumido uma garrafa de vinho branco inteira antes de sair, o próximo lugar em que se encontrou foi numa casa aparentemente normal, mas vermelha por dentro. Vermelha de erotismo, de falta de saída, de desespero, de gritos, de volúpia. Algumas moças, demasiadamente jovens, reuniam-se numa sala improvisada no porão. Toda a claustrofobia da vida que essas moças levavam condensava-se nas peculiaridades da sala e das palavras que ali ficavam.
Após cumprimentar algumas colegas, checou sua agenda - sim, uma agenda, com horários tão disputados quanto os de um renomado psicólogo ou de um extraordiário personal trainer - e reconheceu o sobrenome de seu primeiro freguês, não sabia de onde, mas uma voz ecoou pela sua mente dizendo que aquilo já havia sido visto uma vez ou outra em sua vida. Foda-se. Essa informação não ajudaria em nada no seu desempenho com aquele espécime. Informações e conhecimento não têm valor nenhum para alguém pragmático e pouco essencial como Luana - forma tão mais fácil de se levar a vida, não? Pensar dá rugas. Beauty, real Beauty, ends when an intellectual expression begins. E o que é viver se não apreciar a beleza da vida?
Estralou o pescoço para um lado, depois para o outro. Andou com passos sorrateiros até o escritório, onde encontrou o dito cujo. Parecia ter em torno de quarenta e cinco anos, não usava aliança, estava ainda de terno e possuía algumas rugas que denunciavam seu caráter questionador. Sim, ela já havia visto esse rosto. Mas esse sentimento não era, ou não parecia ser, recíproco. Mas enfim, um rosto é só um rosto, um orgasmo é só um orgasmo e os lençóis de hoje serão trocados amanhã.

Realmente, um dos muitos sistemas de defesa conhecidos e usados pelas pessoas é o esquecimento, a abstração, a negação. Luana não tinha plena consciência disso ainda, mas uma parte de seu eu, de suas características, de suas vontades, tinha sido tão reprimida que, ao vir à tona, para não causar maiores enfermidades à outra parte, aprendeu a guardar suas vivências em uma área à parte em sua mente. Sendo tão paradoxal, tão complexa, e não tendo aprendido a lidar com todo seu conteúdo, Luana seguiu pelo caminho mais fácil. E perdeu-se-lhe a riqueza de ser.

(ainda continua. calma.)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

impulsos

Um feixe de luz entrando através da cortina de camurça e vermelho-sangue e pousando numa pele macia e rosada. Um ambiente fétido, repugnante, medíocre, em oposição a delicadas mãos. Um homem indo embora deixando dinheiro dentro dos sapatos da moça, em oposição à ternura e inocência com que ela se encontrava encolhida em posição fetal na cama. Essa era Luana.
Franziu as sobrancelhas ao perceber que já era dia. Levantou-se preguiçosa e relutantemente, em movimentos lentos e calmos, até que - oito e meia? - já? - vestiu-se - penteou-se - onde está o dinheiro? - ele deve ter pago a diária - saiu e deixou aquele lugar para trás.
Sim, finalmente, chegou a sua casa. Foi direto para o chuveiro, limpou-se de toda a sujeira da noite passada - limpou-se a consciência - limpou-se das memórias, dos sentimentos, da selvageria, do caráter animal e impulsivo - limpou-se da mágoa e do remorso de ser tão paradoxal, primitiva e sem auto-controle - pois era um novo dia e sempre há muito trabalho para ser feito na escola em que trabalhava.
Um tipo diferente de escola, em que as crianças de 4 a 8 anos têm aulas juntas, fora as de matemática e ciências. Esse compartilhamento de experiências e aprendizado era muito rico, e Luana adorava seu trabalho. Às vezes iniciava reflexões e guiava as crianças por uma linha de pensamento, outras vezes dava aula de música, e de tempos em tempos reunia-se com as outras três ou quatro professoras para discutirem o processo, os métodos e os progressos feitos.

O tema das aulas ao decorrer da semana seria sobre controle de seus instintos e noção de público e privado.

É sempre muito difícil explicar para crianças o porquê de certas convenções e coerções. A criança, tendo uma personalidade e um quê primitivo dentro de si, não entende facilmente por que razão certas coisas são públicas e outras são privadas, ou ainda por que deve-se controlar certos impulsos e instintos.

- O que diferencia nós, pessoas, seres humanos, dos macacos e outros animais, além de nossa aparência?, Luana perguntou.
- Macacos têm uma família só muito grande!
- É, os animais estão sempre em bandos, muito grandes.
- Eles não vivem em casas que nem a gente.
- Eles não sabem ler nem escrever. Nem desenhar!
- Então nós, de certa forma, somos mais evoluídos que os macacos, certo?, Luana perguntou. E o que mais? Onde os macacos fazem o número 1 e o número 2?
- Em qualquer lugar!
- E onde eles têm filhos? Um macaco casa-se com uma macaca para sempre e eles têm apenas alguns filhos, ou não?
- Eu outro dia vi na televisão que não existe isso de casar entre os macacos. Um macaco pode ficar com várias macacas ao mesmo tempo.
- Isso tudo, crianças, nos diferencia dos animais. Nós temos controle de nossos impulsos e instintos. Nós sabemos que não podemos simplesmente abaixar as calças e fazer o número 2 na rua, certo? Sabemos que existem certas regras e que devemos respeitar essas regras de convivência. Cada vez mais, quanto mais envelhecemos, nos damos conta de que nós somos donos de nossas vontades e impulsos, e que não devemos nos deixar dominar por eles. Vocês estão acompanhando?
- Um dia ouvi minha mãe dizer pra uma amiga dela que meu pai não sabia controlar seus impulsos sexuais e que por isso eles estavam se separando, porque ele precisava ficar com outras mulheres, que nem o macaco precisa ficar com outras macacas. E ele é velho, professora.
Luana procurou não voltar suas atenções para tal comentário. Desconversou e logo o sinal bateu. As crianças foram todas embora, mas Luana ficou ali, sentada na sala, observando o círculo no chão em que as crianças sentavam na hora das reflexões. Ela lembrava-se claramente da noite passada. Lembrava-se nítida e racionalmente de tudo o que fizera, mas algo a impedia de digerir tudo aquilo, de processar, de sentir novamente o que era estar naquele lugar. Um bloqueio, uma trava de emoções ligava-se toda vez que Luana saía à noite, de forma que a Luana da noite era diferente não comunicava-se com a de dia. Uma forma de defesa, talvez?, pois sem os dois lados da história não era possível refletir-se a respeito, então ambas Luanas seguiriam com sua forma de vida sem culpa ou consciência de suas falhas de caráter.

(continua)