segunda-feira, 28 de março de 2011

sobre o tal Fitz

Fitzwillian. Elegante, de postura sóbria, olhos zombadores, parecia atrair toda a atenção da sala para si só respirando. Exalava arrogância por todos os poros de sua pálida pele. Usava roupas visivelmente caras e portava-se como um cavalheiro, educado e respeitoso com suas palavras.
Era rico. Estupidamente rico. Era herdeiro de uma quantia que poderia garantir uma vida muito confortável para a sua e para as próximas três gerações. Teve a melhor educação disponível desde o berçário, e acostumou-se a receber nada menos que tudo em suas mãos - sempre. Desde bens materiais até respeito e admiração, mesmo que fingidos.
Mas diferentemente do resto de sua família, elitistas ignorantes, Fitz tinha mais complexidade em sua existência. As raízes dessa complexidade não são totalmente certas - parte atribui-se ao fato de ter tido professores muito bons, parte porque era extremamente inteligente, parte porque era uma criança muito sozinha e passou a dedicar-se à leitura de livros densos e de assuntos frutíferos -, mas sabe-se que Fitz desenvolveu uma personalidade multifacetada e, em muitas situações, paradoxal. Por vir de uma família muito rica, tinha algumas obrigações e algumas expectativas a cumprir - muitas delas demasiadamente superficiais para sua essência rica. Tornou-se inseguro diante do choque entre habilidades e expectativas, característica sua que foi e é muito bem disfarçada atrás de seu sorriso de superioridade.
Fitz já se machucou e machucou os outros incontáveis vezes por ter de manter uma imagem tão rígida e imutável; quantos romances e amizades ele perdeu por não se deixar relacionar com pessoas de nível inferior... Parte dele dizia que as relações humanas são baseadas em questões que vão além de nível intelectual - mas a outra parte dizia que para a relação ir adiante a pessoa tem de ter a mesma quantidade de inteligência do que ele mesmo (como se inteligência fosse mensurável), porque desta forma a pessoa em questão sempre teria uma contribuição para fazer à cultura de Fitz. Sua parte humana dizia que uma relação baseia-se em confiança, respeito, admiração e empatia mútuos, além de semelhanças morais; mas a parte lógica e irredutível insistia no fato de que um indivíduo só é respeitável se for intelectualmente páreo.
Essas questões internas nunca foram completamente resolvidas; Fitz não buscou ajuda e nenhuma ajuda foi lhe oferecida; então conforme foi crescendo e amadurecendo, esses pontos e paradoxos foram acumulando-se dentro de si, não desenvolvidos e não trabalhados. Esse defeito, esse rombo moral na personalidade de Fitz é conhecidos por poucos, pois nunca ninguém conseguiu adentrar ou compreender o labirinto que é seu espírito.
Foi trabalhar com administração para dar continuidade à empresa do pai, assim como seu pai o fez, assim como seu avô o fez, e assim como seus filhos e filhos dos seus filhos o farão. Tendo compreensão dessa área desde muito tenra idade, Fitz assumiu com muita tranquilidade o cargo de dono da tal. Aprendeu a ser eloquente, carismático e hipócrita para conseguir o que queria - parte dele gostou de aprender a lidar e manipular as pessoas, mas a outra parte detestou o fato de ter de baixar a guarda, de ter de mudar do semblante ranzinza e superior para o afável e confiante, pois ele detestava ser quem ele não era. Paradoxos, paradoxos.
Trinta anos e nenhum herdeiro, nenhuma mulher, nenhuma amante. Fitz já se apaixonara anos atrás - mas a visão de um casamento com uma mulher sem ambições o fez sufocar esse amor correspondido e bonito. Detestava-se por isso. Adorava-se por ter visão de futuro.
Muitas barreiras foram transpostas durante toda a sua vida; Fitz aprendera a deixar algumas complexidades de sua alma para trás - detestava-se por ser tão superficial às vezes, adorava-se por conseguir ser tão pragmático. Sim, pragmatismo é algo muito valorizado por sua família.
Fitz. Complexo, paradoxal, pragmático e inseguro.

quinta-feira, 24 de março de 2011

sobre o tal Dibs

Dibs era o mais jovem dos indivíduos ali presentes. Tinha entre seus vinte e vinte e cinco anos. Não sabia muito sobre a vida, não sabia quem era, não sabia se era alguma coisa, ele era não sabe quem.
Vivendo entre linhas de liras e prosas, filosóficas ou suicidas, existenciais ou supérfluas, Dibs aproveitava seu tempo. Não sabia se era muito inteligente - nunca tivera nenhum grande estímulo e realmente acreditava que não tinha habilidades muito foras do comum. Talvez seus verdadeiros talentos tivessem sido sufocados com a incerteza da capacidade. Dibs não sabia exatamente como conviver com isso.
Apesar de ter alma de poeta e sonhos ingênuos, quando questionado sobre seus sentimentos, Dibs escondia-se atrás de ideologias tiradas de algum livro ou de algum comentário sarcástico que o colocasse na (ilusão de) posição de controle da situação novamente. Não sabia exatamente como lidar com isso.
Sentia que tinha opiniões e que podia desenvolvê-las, mas - os outros pareciam estar sempre com tão mais razão que Dibs não desperdiçava seus neurônios numa discussão ou debate.
Em sua alma lírica a ideologia que dominava era a do amor. Tinha uma sensibilidade quase feminina nesse aspecto. Sonhava em compor uma família, em viver entre atos de aprendizado, amadurecimento e carinho. Casar-se com a mulher amada. Ter filhos cujas bochechas rosadas alegra-lo-iam a cada instante do dia.
Por ser de espírito tão leve e simples, tendia a não destacar-se numa multidão - não que ele tentasse, de qualquer forma. Dibs geralmente era o garoto sentado na ponta da mesa, a olhar pelas janelas, a observar as nuvens e a tamborilar os dedos na lateral do copo. Quando seu discurso era requisitado, sorria de uma forma doce e assim satisfazia quem tivesse perguntado.
Dibs sentia-se tão diferente de Eduardo. Aliás, sentia-se quase intimidado só de estar na presença de um homem que, segundo suas fontes, era tão respeitável. Lembrava-se de ter visto Eduardo em tal revista algumas vezes. E Hermann então? Hermann poderia dar inimagináveis aulas sobre tudo o que é possível dentro de filosofia, psicologia, política, economia, história... Vez ou outra, Hermann lançava a Dibs um olhar quase paterno. E Fitz. Fitz era Fitz, oras! Bonito, rico, galã. Dibs não sabia a qual personalidade aspirar mais.
Dibs, com suas personalidade, alma e ideias ainda em formação. Dibs, com uma renda média, uma aparência média e uma vida social média. Dibs achava-se medíocre, queria ser mais, mas tinha medo de perder-se dentro desse "mais".

sábado, 19 de março de 2011

três homens - 2

Então a cena era a seguinte: uma taverna escura. Atrás do balcão, um garçom enxugando um copo. Numa mesa ao lado de uma janela, uma dama - cujas feições não podiam ser vistas - sentada ao lado de três cavalheiros, de um lado da mesa, e do outro encontrava-se sentado um jovem adulto, que encarava-os com interesse. Este último chamava-se Eduardo, e nada sabia dos outros três homens sentados a sua frente.
Após algum tempo dedicado ao silêncio e à reflexão, o senhor melancólico pronunciou-se.
- Mil perdões, minha dama, mas receio que minha presença aqui seja inútil, no melhor sentido da palavra. Creio que não há nada que eu possa adicionar à alma deste jovem rapaz. Ele parece-me decidido a não ouvir uma só palavra do que for dito aqui.
- Com licença, senhor, mas de onde veio tal afirmação? Eu nem sequer dirigi-te a palavra - Eduardo retrucou.
- Pela sua postura, meu jovem, é óbvio que você está convencido de que o modo como está vivendo é o melhor. Você está sentado de braços cruzados lançando-nos um olhar de frio e intensos desprezo, subestimação e desesperança. Acredito que tenha mudado de vida um tempo atrás e decidiu não voltar ao que foi outrora, estou certo? Bem, não é uma conversa com três homens desconhecidos que mudará suas atitudes. Epifanias morais não são tão recorrentes assim.
- Hermann, sê cauteloso com tuas palavras. Eduardo precisa de ti mais do que qualquer um neste instante. - a Dama interviu.
- Rapaz - o forte pronunciou-se - com licença, prazer. Meu nome é Fitzwillian, mas chamam-me Fitz. Tenho apenas uma pergunta: o que é que está fazendo aqui quando uma vida perfeita e almejada por todos encontra-se em sua casa?
- Minha Dama, acho que eu sou o que menos importa daqui, por que fui chamado? - o pequeno burguês perguntou.
Com um gesto, a Dama calou os três.
- Eduardo, estes são Hermann, Fitz e Dibs. Chamei-os porque cada um tem algo de essencial para dizer-te.
- Dama, como um velho frustrado como eu pode ajudar um jovem bem sucedido e realizado profissionalmente como este? Ele está por acaso procurando uma possível absolvição através da busca por excelência moral e intelectual? Não? Nesse caso, não há auxílio que eu possa oferecer. Retiro-me.
- Com licença, senhor Hermann, posso informar-me do motivo pelo qual o senhor está julgando-me a todo instante? Está aqui há pouco mais de um quarto de hora e acha que já me analisou completamente. Um cavalheiro digno e experiente como o senhor devia constituir suas opiniões de tópicos que vão além do preconceito. - Eduardo levantou-se e impediu que Hermann saísse.
- Oh, entendo. Vista essa reação, passo a acreditar que o senhor é um sujeito moral dos mais altos índole e caráter, que possui mente aberta e prontifica-se a uma mudança radical em seu estilo de vida caso haja interferência neste?
- Hermann, sossegue, não está vendo que o rapaz não está interessado em seus conflitos e críticas existencialistas? - Fitz intrometeu-se. A postura deste era realmente curiosa. Enquanto surgiam faíscas entre Hermann e Eduardo, ele apenas fumava seu charuto com os pés apoiados em cima da mesa. E Dibs apenas observava-os. Quando Hermann pronunciava-se, Dibs dava a impressão de querer levantar-se para concordar e defendê-lo, mas continha-se, e quando Eduardo fala, agia da mesma forma. Era um pobre homem perdido em delírios intelectuais e morais, reprimido pela própria consciência.
Já a Dama, a Dama assistia a tudo com certo prazer. Não falava, mas com certeza exercia uma grande força sobre os quatro ali presentes.

quarta-feira, 9 de março de 2011

três homens

Balançou a cabeça como se quisesse afastar aqueles pensamentos e voltar à sua realidade.
- O fato é que eu fui extremamente anti-ético e compartilhei a vida desse meu paciente deprimido com uma certa moça. Uma moça que não tinha como ser mais fútil. Na verdade, eu a considerava tão miserável que nem me lembro o que levou-a a procurar-me. Eu contei a ela sobre todas as preocupações, desilusões e inquietações do meu paciente, e ela convenceu-me de que ele era louco, de que ele estava cego; e vendeu-me o ideal de ser exatamente o oposto disso. Comecei a me tornar mais pragmático, fui perdendo meu lado idealista, parei de perder meu tempo com planos de uma revolução. Sei que ela foi muito conveniente.
- Ela apenas confirmou a ideia que estava se desenvolvendo dentro de ti. Não culpes tu essa moça totalmente por algo que só pôde tomar uma forma consistente depois que tu mesmo começaste a refletir a respeito.
Eduardo encarou-a. Tentou se lembrar do rosto da antiga paciente dissimulada. Havia algo de muito familiar entre a paciente e a moça.
Ele abriu a boca pra murmurar alguma coisa, algum protesto, mas foi interrompido pelo baque surdo da porta da taverna batendo na parede. Três homens entraram e juntaram-se a Eduardo e à moça. Ela parecia à vontade e familiarizada com aqueles homens. Um era alto, magro, até meio cadavérico - sua expressão era melancólica, tinha cabelos ainda muito negros e usava óculos de aro redondo. Estava vestindo terno e gravata, um traje excessivamente formal para a ocasião. O outro era forte, bonito, em seu olhar havia traços de desprezo e em seu sorriso havia linhas de superioridade. Por fim, o terceiro parecia incrivelmente comum, não tinha nenhuma linha de expressão muito marcante em seu rosto e usava roupas comuns de um burguês comum.
O terceiro homem foi o primeiro a se pronunciar.
- Chamou-nos, dama?
- Certamente, senhor. Eu preciso de ajuda com esse promissor rapaz.
Eduardo olhou diretamente para os olhos do terceiro homem e, novamente, sentiu que o conhecia ou reconhecia. Mas nada era certo - estava ébrio e ultrapassando a tênue divisão entre a realidade e a fantasia.

domingo, 6 de março de 2011

embriaguez de memórias

A moça encarou-o como se estivesse se divertindo com aquelas respostas. Ela tinha um ar de superioridade tal, que, quando sorria, fazia Eduardo sentir um impulso elétrico subindo-lhe pela espinha e forçando-o a gritar de desespero, de agonia, de desesperança. Como era inusitado sentir-se inferior. Era uma sensação tão agridoce.
- Conta-me como era tua vida antes.
- Antes do quê?
- Antes de vender-se ao mundo das vendas e manipulação.
- Eu era psicólogo. Hoje tenho ojeriza a pessoas. Minha vida baseava-se em tentar convencê-las de que não estavam levando a vida de uma forma saudável, de que elas poderiam ser felizes, de que - com um pouco de esforço - suas vidas poderiam mudar drasticamente... Mas depois de anos trabalhando com isso fica claro que ninguém quer realmente mudar. Há uma insistência em dar continuidade a suas vidas miseráveis, medíocres, medianas, fúteis - e eu tinha a sensação de que naquele consultório o mentecapto era eu mesmo! As pessoas chegavam e tentavam-me com a inebriante essência da ignorância, da apatia, do conformismo, tentavam vender-me um projeto de vida ideal, sem preocupações, sem grandes questionamentos...
- Mas não foi isso que te fez mudar.
- Não. Foi um paciente em particular. Tinha por volta de uns cinquenta anos. Chegou a meu consultório dizendo estar louco - dizendo estar louco de tanto não entender o mundo a sua volta. Tinha tendências suicidas, mas era presunçoso demais para acabar com a própria vida. Era incrivelmente deprimido. Tudo era motivo para uma reflexão pessimista ou uma análise destrutiva da sociedade. Tinha um histórico muito interessante - pois, diferente de muitos dos meus pacientes, não tivera uma família ou infância desregulada. Decidi estudá-lo a fundo, e descobri que tratava-se de um caso raro de excesso de consciência. Eu tentei ajudá-lo, tentei levá-lo a descobrir algo em sua vida pelo qual valesse a pena lutar, mas tudo que o fazia feliz e útil também o levava à bebida, às drogas, pois ele não se sentia capaz e forte o suficiente pra conseguir lidar com tudo aquilo.
- E o que te assustou foi o fato de que tu estavas destinado a acabar assim também.
Durante alguns curtos instantes, Eduardo teve a sensação de que já vira aquele rosto e já ouvira aquela voz antes. Sentia como se a moça fosse um amigo de infância que agora havia voltado para mostrá-lo um caminho para a absolvição. Ou era alguma ilusão causada pela sua mente, embriagada de memórias da sua antiga vida, do seu antigo eu. Difícil distinguir.

terça-feira, 1 de março de 2011

a primeira conversa

Achou um tanto estranho aquela quantidade de imposições numa só frase. Claro que não estava acostumado a receber ordens de ninguém - era sempre ele mesmo quem ditava as regras. Talvez por esse motivo mostrou-se tão obediente e ávido por sentir-se subordinado a alguém.
De qualquer forma, levantou-se e foi atrás da mulher. Sua próxima lembrança começa em uma taverna estranhamente vazia. Lá, encontravam-se apenas ele e sua mentora. Ainda não podia ver-lhe as faces, mas tornou a ver seus braços, muito brancos, de pele aveludada. Estavam sentados um de fronte ao outro, e a moça segurava o queixo com as mãos, com os cotovelos apoiados na mesa. Chegava a aparecer que estava admirando-o.
- Do que precisas?, ela finalmente perguntou, após alguns instantes apenas observando-o.
- Como assim, do que eu preciso? Não preciso de nada, já tenho tudo.
- Se hesitas e perguntas é porque não sabes. Responde. Do que precisas?
- Não preciso de nada.
- E por que razão? Não desejas nada?
- Claro que desejo. Desejo sentir algo além de tédio.
- O que comprova minha teoria. Achaste-me pois não aguentavas mais tua rotina.
- Eu te achei fazendo algo que faço todos os dias. Andando na rua à noite, vagando e bebendo.
- E é isto que torna nosso encontro tão interessante.
Eduardo encarou-a. Tinha uma expressão digna de uma esfinge. Parecia que estava desafiando-o a cada palavra. Desafio aceito.
- Quão egoísta és tu?
- Egoísta a ponto de achar que nada pode me salvar além de mim mesmo, e minhas tentativas de absolvição foram totalmente falhas.
- Realmente achas que isto significa ser egoísta?
- Certamente. Alguns buscam a redenção no amor; alguns na religião; outros na realização de sonhos; mas eu, eu transpus todos esses limites.
- Pelo que conheço de ti, sei que nem sempre foste assim. Consegues lembrar-se de como eras antes da vida boêmia?
- Eu era infeliz.
- E o que és agora?
- Apático.