domingo, 23 de dezembro de 2012

2012, 2013

Cara, 23 de dezembro de 2012.
Não sei o que me deu pra escrever aqui. Acho que saudades. Culpa por não ter escrito durante tanto tempo. Vontade de escrever pensamentos regurgitados sem precisar colocá-los em ordem. Nostalgia de ouvir o barulho do bater incessante no teclado .
Mas eu gosto de fazer um balanço de final de ano.
Esse ano foi bem diferente do que eu esperava.
Conheci pessoas novas, entre elas, uma que me fez muito bem. Fiz novas amizades, fortaleci outras mais antigas. Surtei muito. Decidi o que queria prestar, mudei de ideia, me decidi de novo, fiz inscrição, não dava mais pra voltar atrás. Ultrapassei meus limites físico-psicológicos ao estudar. Consegui achar certo tempo pra diversão. Não consegui achar tanto tempo para leitura. Não consegui achar fôlego pra me distrair a ponto de criar uma estória e postá-la aqui, apesar de constantemente inventar situações, inícios de contos, personagens, paisagens, momentos. Decepcionei-me comigo mesma quanto a isso. Amadureci muito. Mudei de opinião algumas vezes, conheci outros pontos de vista, identifiquei-me com uma filosofia ou outra. Percebi como algumas opiniões vêm da maturidade. Percebi como algumas atitudes vêm da maturidade. Vez ou outra quis desistir. Senti falta de não viver em função de algo tão prático. Senti falta do lirismo. Fiquei (e estou) de saco cheio de ciências. Senti falta de ter um momento em que não precisasse fazer nada e pudesse só olhar pro céu. Senti falta do cheiro da chuva. Senti falta de nadar. Senti saudades do frio. Viajei. Sinto falta do Rio de Janeiro. Frustrei-me mais com Ribeirão Preto. Frustrei-me mais com as pessoas de Ribeirão Preto. Percebi que Ribeirão Preto é assim e não tem jeito. Pintei o cabelo diversas vezes. Mudei completamente de estilo de roupa. Cansei de ser chamada de "adolescente" e de não ser levada a sério. Cansei dessas pessoas que subestimam as outras por estas não terem graduação ou idade. Cansei de gente que acha que entende de literatura, cinema ou filosofia por ter lido um livro, visto um filme, lido um ensaio. Cansei de muita coisa, percebi que minha revolta não é evanescente. Quis dormir.

Quero dormir.

Quero paz. Não paz sinônimo de prosperidade econômica ou afetiva, mas paz de saber que estou no caminho certo, que vai dar tudo certo, que eu vou conseguir, que eu não vou estar sozinha, e que não vai me prejudicar se eu quiser tirar um dia pra deitar no quintal de casa e ficar olhando as nuvens indo de um lado a outro.
Quero viver por mim, não pela sociedade.
Quero conhecer (mais) gente que me aceite como sou, revoltada, chata, nerd e deslocada.
Quero ler mais.
Quero ser menos egoísta, menos impulsiva, menos dramática, menos ansiosa.
Quero passar no vestibular, pra que eu não precise passar por tudo o que eu descrevi de novo.

Quero voltar a escrever. Quero ter tempo pra voltar a escrever. Quero voltar a ter disposição pra voltar a escrever. Quero não precisar ter de escrever mais nenhuma dissertação na minha vida.

Eu preciso, preciso muito resgatar pedacinhos de mim que foram fragmentados e empoeirados ao longo do ano. Porque precisar decorar zoologia animal fez anular a bruna espontânea. Porque decorar a lei dos cossenos fez anular a bruna lírica. Porque decorar a geografia da China fez anular a bruna inventiva, imaginativa. Porque esse ano me estragou completamente.

Não respirei. Respira. Respiro.

terça-feira, 19 de junho de 2012

escolhas

Ainda é cedo, amor... mal começaste a conhecer a vida...

Ana e Caio prosseguiram andando pelas estreitas ruas não-turísticas de Paris. Estar lá era melhor do que ela pensara, pois estava realmente acontecendo. A realidade é sempre melhor do que o melhor dos sonhos. Durante o passeio, passaram por muitos jardins; estar cercada por flores e não mais por cana certamente era um sentimento interessante.
Ela observava os nativos passeando pelas ruas com expressões totalmente apáticas. Triste pensar que, quando o belo é cotidiano, ele deixa de ser belo. Viver em uma cidade tão histórica, tão bonita, tão completa e ignorar esse fato por simplesmente estar em contato com ele todos os dias. Claro que, mais cedo ou mais tarde, tudo cai na rotina, tudo torna-se convencional - mas por isso devemos deixar de apreciar o que esse "tudo" tem pra oferecer, apresentar, emocionar?
Se esses parisienses fossem morar alguns dias em São Paulo, "selva de pedra" e asfalto, cinza, muito cinza e fria, certamente sentiriam falta de Paris.
Engraçado isso, de as pessoas precisarem perder para valorizar. Como se só a ausência demonstrasse que era pra haver algo ali. A permanência de algo em nossas vidas acaba virando rotina, acostumamo-nos com a rotina e passamos, egocentricamente, a acreditar que, se algo mudar, não fará diferença. Mas faz. Sempre faz.

"Olha só, um hostel"

Depois de algumas horas andando, Ana e Caio encontraram um lugar para ficar. Não era cinco estrelas, não ficava na avenida mais bonita da cidade, não era o prédio mais bonito da cidade, o caminho que levava até lá não era o mais fácil de se encontrar - e menos fácil e atrativo ainda de se seguir. Mas era o hostel que eles queriam, de que eles precisavam, e que eles podiam pagar.

Muitos fatores definem nossas escolhas. Nossos valores, nossas necessidades, nossas limitações - e o  que era mais triste: havia uma tendência atual muito crescente de se fazer escolhas baseando-se no número de empecilhos entre você e sua meta, sendo esta geralmente o sucesso (econômico, acadêmico, existencial). Esses empecilhos podem ser o tempo, a quantidade de estudo ou a quantidade de habilidade necessários para se atingir a meta. E quanto maior cada empecilho, menos esse caminho é escolhido - e mais à margem da sociedade em questão ele vai ficando. Não é à toa que pouquíssimas pessoas escolhem a docência - estudo demais, tempo demais, suor demais investido em algo que não é socialmente reconhecido como deveria ser. E também não é à toa que a procura pela participação em reality shows é tão grande: fama e dinheiro fáceis, rápidos e a qualquer custo, quem não quer?

Mas afinal o hostel, por dentro, não era ruim. Era confortável, caseiro e tinha cheiro de café. Ana e Caio logo sentiram que fizeram a escolha certa, e que era ali mesmo que deveriam ficar. Descobriram que dividiriam o quarto com outras três pessoas: um francês, de Marseille, uma iraniana, de Teerã, e um japonês, de Osaka. Nunca Ana tinha ficado em um só quarto com três culturas, ideologias e etnias diferentes. Nenhum dos três estava no quarto - compreensível, por serem quatro horas da tarde.
Caio, como de costume, levara mais livros do que roupas na mochila, e abriu um aleatório assim que terminaram de se acomodar.

Ana olhava pra Caio e se perguntava por que demorou tanto para conhecê-lo. Gostava muito de tudo o que a entrada de Caio proporcionara em sua vida - passou a se entender mais, a refletir mais, a analisar-se mais. Ele era muito parecido com ela, inclusive nos aspectos negativos. Eles aprendiam um com o outro e iam se reconstruindo em cima das bases que construíam juntos.

...já anuncias a hora de partida sem saber mesmo o rumo que irás tomar...

(continua)

terça-feira, 12 de junho de 2012

café de flores

Deixe-me ir, preciso andar; vou por aí a procurar... rir pra não chorar.


Outro aeroporto. Aquela multidão. Ficar ali, em pé, desafiando o fluxo de movimento das pessoas com o ato de simplesmente ficar parado, estático, é algo engraçado de se fazer. Ficar ali, em pé, torna totalmente compreensível e palpável a ideia de se estar sozinho mesmo quando rodeado de centenas de indivíduos.


Ana sentiu um arrepio.


Detestava aquele sentimento. Já o havia sentido muitas vezes, mais do que o suficiente pra entender que não é prudente fazer sua felicidade depender de outras pessoas.
Na verdade, estar em meio a uma multidão aflorava muitos sentimentos contrários em Ana. Ela gostava muito de andar pela rua, olhar para as outras pessoas e imaginar a história de suas vidas. Imaginar por quais problemas elas passam, o que elas estão pensando naquele momento. Essa atividade a fazia se sentir menos melancólica - Ana tinha essa tendência a aumentar muito a proporção de seus problemas, e imaginar que outras pessoas também têm tantos problemas quanto ela levava-a de volta à realidade. É como subir ao topo de uma montanha: os problemas de verdade, os realmente grandes, podem ainda ser vistos de lá de cima, e todo o resto perde importância. Sair andando pela rua, também, sempre fora uma prática muito produtiva, muito frutífera e inspiradora - algumas das filosofias mais complexas de Ana surgiram enquanto ela andava o quarteirão da Lafaiete até a Prudente de Morais, um quarteirão com nada que pudesse inspirar pensamento algum, mas as melhores ideias e contos sempre vêm em momentos de ócio e distração.
Por outro lado, Ana podia sentir-se extremamente sozinha enquanto cercada por tanta gente. Perceber que se é apenas mais um para alguns é reconfortante, mas, para Ana, é desesperador. Aquele sentimento de impotência. O nervosismo que nos toma conta, a vontade que dá de berrar "parem de andar, parem, sentem-se, respirem!", aquele caos, a turbulência... Ana tinha uma pastora extremamente bucólica dentro de si, por mais que odiasse reconhecê-lo. E, principalmente nos últimos meses, a vontade de fugir para um campo de clima temperado só vinha aumentando.


Pegaram um táxi até o centro da cidade. Como levavam pouca bagagem, decidiram andar e reconhecer se Paris era tudo aquilo de que sempre tinham ouvido falar.
"Você fez reserva em algum hotel?"
"Não. Você fez?"
"Não"
"Que faremos?"
"Andar por aí, respirar, tomar um café, e parar no primeiro hostel com que nos depararmos"
Isso podia às vezes atrapalhar, mas as espontaneidade e despreocupação de Caio vinham em bom momento naquela situação. A última coisa de que Ana precisava era de um neurótico, estressado, que não saberia lidar com a situação de simplesmente não ter uma cama garantida quando a noite caísse.


Era primavera em Paris. Alguns prefeririam passar um Outono em Nova Iorque, e lá estava Ana, na primavera em Paris.


Eles começaram a andar. Talvez fosse por pura frescurite, por puro placebo, porque cidades são cidades em qualquer lugar do mundo, e nem o trânsito nem as pessoas seriam a diferença entre Paris e São Paulo - mas Ana sentia que havia algo mais. Algo que não pode ser tocado. Talvez fosse pela arquitetura tão característica da cidade, ou pelo fato de que tantos eventos já se passaram lá historicamente, tantos grandes filósofos já se sentaram naqueles cafés, tantas ideias já circularam por aquelas ruas que, nossa. Passar pelo arco do Triunfo, pela torre Eiffel, pelo Café des Flores, quem sou eu perto dessa cidade?
Andaram. E andaram. Que é o que precisa ser feito para conhecer a cidade a fundo. Andar por ela, conhecer suas ruas tortas, seus prédios, suas galerias, seus jardins. Quem anda só de táxi ou de ônibus não conhece a essência da cidade nem de perto.
Ana, num sobressalto, parou de andar.
"O que foi, Ana?"
Ela encarou a extensão da rua à frente de si.
"Tem uma moça, andando de bicicleta, com um mochila cheia de jornais, passando por aqui", ela começou a falar, "que fica subindo e descendo as ruas que cortam a rua em que estamos"
"E qual o problema?"
"Isso está me deixando nervosa"
"Por quê?"
"Porque por mais que nós andemos, ela sempre está na nossa frente, e isso me deixa nervosa"
Caio encarou-a meio sem entender se Ana estava falando alegoricamente ou se aquele era um dos seus ataques de neurose. Ana era assim, costumava falar em metáforas e fazer analogias de seus próprios sentimentos, mas outras vezes era só um ataque de histeria.
"Mas o pior", continuou Ana, "é que eu sei que vou me sentir estranha quando nós a alcançarmos, pois agora me acostumei a sempre estar distante dela. Quando o encontro chegar, e chegará, fatidicamente, bem..."
"Então você vai encará-la, olhos nos olhos, e comprar um jornal."

(continua)

segunda-feira, 4 de junho de 2012

quero nascer, quero viver

Ouvir os pássaros cantar; eu quero nascer, quero viver.

Ela levava em sua mochila algumas poucas trocas de roupa, dois livros, um caderninho e música. Além de documentos, dinheiro e toda a tralha burocrática de que se necessita quando se viaja ao exterior, é claro. Mas ela não precisa de muito mais do que isso. O mais importante levava consigo, intocável - a vontade de fugir, que faria a viagem ser muito bem aproveitada.
Entre multidões estéreis, finalmente ele apareceu.
"Demorei?"
"Demorou"
"Mas pelo menos apareci"
"Em todos os sentidos"
Trocaram sorrisos. Ana e Caio se conheciam há pouco tempo, mas - e digo isso da forma mais clichê e piegas possível - identificaram-se um no outro logo no primeiro contato. Extemporaneidade e gênio difícil eram suas principais semelhanças. Digamos que, aprendendo a lidar um com o outro, aprenderam a lidar consigo mesmos - e poucas coisas são mais eficientes para se alcançar qualquer objetivo do que aprender a lidar consigo mesmo, aceitar-se, enxergar-se, conhecer-se.
Ana levantou-se e, ao lado de Caio, foi andando até a plataforma de embarque.
"Você tem certeza, Ana?"
"Por que as pessoas ficam me perguntando se eu tenho certeza ou não? Eu sei o que eu quero, e eu quero ir embora daqui, dar um tempo de tudo, sentir-me viva de novo, e se pra isso eu preciso ir até Paris é isso que eu vou fazer"
"Tá certo, então vamos"
"E você?"
"Eu o quê?"
"Tem certeza do que está fazendo?"
"Certeza do quê?"
"De que quer ir comigo"
"De tudo o que vem acontecendo comigo, uma das minhas únicas certezas é que eu quero estar com você"
"Hum, ok, certo. Boa resposta."
Ana suspirou. Engraçado isso, gostar de alguém.
Sentir-se viva de novo. Ana tinha dito isso quase sem pensar, mas analisando bem, era realmente este o problema: há tempos ela não se sentia viva; sentia-se apenas existente. Sim, pois entre viver e existir há uma grande distância filosófica e também prática. Viver exige muito mais coragem. Viver é fazer escolhas e assumir suas consequências. Viver é sentir. Viver é escolher seu próprio rumo (claro que dentro de certas limitações; ninguém é integralmente livre). Pois se nós não escolhermos nosso próprio rumo, quem o fará? A sociedade? Nossos pais? Nossos amigos? Se havia algo que tirava Ana de órbita era a sombra do pensamento de que ela não estava no controle de sua vida. Pobre menina idealista.
Podia ser idealista ideologicamente, mas no âmbito das relações pessoais as ideias tomavam outro rumo. Sua filosofia era de não esperar nada das pessoas -  nem atitudes boas, nem ruins. Ela simplesmente não esperava ser surpreendida por ninguém. Isso era, muitas vezes, ruim, pois fazia Ana subestimar indivíduos que acabam se mostrando muito, digamos, dignos de sua afeição. Mas, por outro lado, Ana preservou-se de muitas decepções agindo assim.
Já estavam procurando seus lugares no avião. Como se praxe, Ana sentara-se junto à janela, para poder, sem perturbar mais ninguém, olhar o quanto quisesse para o mar, o céu, a escuridão.
"Olha só", disse Caio, apontando para a tela de computador no assento da frente. "Frank Sinatra"
"Tá, mas quando estivermos chegando, vou colocar Piaf"
"Exatamente o que eu ia falar"
"Ia nada"
Caio bufou, e Ana riu.

A inexplicável sensação de estar sobrevoando o mar, e nada mais importar além do próprio ato de viajar. As paisagens vistas, as emoções sentidas, as reflexões e confabulações, e, é claro, o destino.
Porque viver é isso. Não se pode chegar ao destino final sem se ter aproveitado a viagem. Qual a vantagem de viajar de janelas fechadas, não enxergando mais nada, porque nada mais importa do que o final? Da mesma forma, por que viajar só por viajar, só para curtir a paisagem, sentir o sol no rosto e aproveitar a calma de não se ter compromisso nenhum até se chegar ao destino? O ato completo de viajar engloba tudo: aproveitar a viagem, não se deixar cegar por um só objetivo, permitindo-se olhar para os outros lados e ver inclusive outros destinos que poderia ser alcançados; mas não perder de foco o objetivo final - que, depois de uma viagem bem aproveitada, será infinitamente mais valorizado.
E isso, isso era o que estava faltando; viver pelo simples ato de viver - não por trabalhar, enriquecer, ter de se sustentar economicamente, apenas por viver, aproveitar a viagem.
O engraçado é que as pessoas não sabem viver. Quando não têm compromissos, perde-se a noção de vida. Domingos são o maior exemplo disso. O fenômeno do Ócio Dominical é justamente aquele pensar "não tenho que estudar, trabalhar, fazer contas, nada - o que eu faço comigo mesmo?", e perde-se a noção do quando parar, pensar e respirar fundo é bom. Ler um livro e saboreá-lo. Ouvir uma música e internalizá-la. Sentar na grama e perceber todo o organismo que o circunda.
Por isso Ana gostava de praias. Nada melhor do que sentar na areia e passar horas ouvindo o som do mar.

"Ei, acorda, nós chegamos"

(continua)

domingo, 3 de junho de 2012

anacronismo ambulante

Deixe-me ir, preciso andar; vou por aí a procurar... rir pra não chorar.

Ana estava sentada no chão, ao lado de uma mochila e uma bolsa pequenas, do aeroporto de Congonhas. Ela encarava as passagens recém-compradas e absurdamente caras para Paris. Ela não pensara racionalmente sobre o assunto; sabia que, se o fizesse, ela mudaria de ideia e voltaria para sua vida - e isso estava fora de questão.
Quem a visse de fora prontamente a consideraria uma menina mimada, insatisfeita com a própria insatisfação e inventando mágoa porque a própria vida nunca proporcionou-lhe nenhuma. Mas a verdade é que Ana era um anacronismo ambulante e tinha consciência de sua condição desde, bem, sempre. É ruim sentir-se extemporâneo, principalmente quando o próprio motivo de Ana sentir-se extemporânea é extemporâneo. Entende? Ana adorava pensar, e pensar nos torna tristes, e ninguém gosta de gente triste. Mas o pensar era tão intrínseco, tão inerente a ela; não tinha como combater as náuseas que constantemente a assolavam.
As pessoas passavam e a encaravam. Ela virava os olhos; já se acostumara a olhares curiosos de pessoas pequenas.
Paris. Por que Paris? Fora uma decisão quase subconsciente. Paris é história e filosofia em seu estado mais puro, é beleza, é lirismo, é tudo de que Ana precisava. Precisava dar um rumo para sua própria história, um sentido para seu próprio viver. Ah, sim. Isso também causaria estranhamento. "Por que isso, Ana?", as pessoas diriam. "Você já tem um apartamento, um estágio bem remunerado e um carro, de que mais precisa?". De muita coisa. Do essencial.
Cadê o Caio?
Seu celular não parava de vibrar. "Marina ligando". Recusar chamada. Hoje era a festa de aniversário surpresa de uma colega sua, e Ana tinha confirmado presença. Marina, a organizadora, provavelmente estava ligando para dar uma bronca em Ana, chamá-la de egoísta e mandá-la ir para a festa naquele instante. Não pelo fato de que Ana era querida, mas porque festas só têm graça se há vários convidados.
Colegas.
Ana tivera muitos colegas em sua vida. No colegial, na faculdade, no estágio e agora no curso preparatório. 22 anos, três escolas depois, quatro ambientes de socialização frequentados atualmente e nada mais do que dois amigos. Deprimente, certo? Sim. Insuportável? Não. Situação difícil de se encarar? Talvez. Mas Ana, depois de um tempo, e por mais melancólico que isso soe, aprendeu a ser um pouco mais autossuficiente, mesmo isso não preenchendo a exiguidade de não realmente ter alguns semelhantes com quem repartir suas misérias, abstrações e até júbilos, eventualmente.
O aeroporto estava impressionantemente movimentado para uma quarta-feira no meio de março, pensando bem. Passou um homem com a expressão tão triste que Ana teve vontade de abraçá-lo. Passou uma mãe de mãos dadas com o filho, já adulto, que tinha a expressão mista de felicidade, tristeza e antecipada saudade mais bonita do mundo. Passou um casal que com certeza estava saindo em lua-de-mel, julgando pelas suas expressões de que mais nada existia além deles e de suas passagens.
O celular vibrava de novo. Dessa vez era a mãe de Ana.
"Ana, você tem certeza?", a mãe repetia. "É claro que eu te dou apoio, só preciso de que você me dê certeza de que sabe o que está fazendo". Não, Ana não tinha certeza.

Quero assistir ao sol nascer, ver as águas dos rios correr...


(continua)

terça-feira, 29 de maio de 2012

tic tac

"This is your life, and it's ending one minute at a time"

Noutro dia, resolvi reparar em como eu estava andando. Eu estava no shopping e olhando para meu próprio reflexo nas várias vitrines. Eu via uma menina andando a esmo, como quem possui um destino mas não tem direção, como quem tem necessidade mas não tem vontade. E senti pena. E eu odeio sentir pena de mim mesma. Mas por mais que eu odeie, eu sinto, forçosamente.

Olhei no relógio.

E, de repente, todo o lirismo cessou.

E de repente tudo ficou tão lógico, claro, óbvio, dissertativo, tão irritante, tenho um destino tão claro, definido e fatídico que, nesse ano, viver tem sido sem graça.
Porque eu acordo, alimento-me, estudo, estudo, estudo e estudo mais um pouco, então eu me alimento e durmo. E minha vida se resume a isso de segunda a sexta-feira. E isso lentamente vai empurrando pro lado toda a tortice que é tão intrínseca a mim.
Eu não tenho mais tempo pra parar... e parar. E pensar. Não tenho mais tempo para sentar e ler um livro, e saboreá-lo, e tirar dele toda a sua essência e espalhá-la por toda a minha essência, não tenho mais tempo de assimilar conteúdos e pensamentos, porque eu simplesmente não mais os tenho.
Viver, para mim, tem-se limitado à pura atividade de sobreviver e resistir, não mais existo.
E eu estou cansada, estou muito cansada de ficar na internet, navegando de forma letárgica, só comentando o que as pessoas escrevem ou entrando em sites de humor.

Sou só mais uma maquininha de decorar fórmulas necessárias para passar no vestibular.

E eu estou cansada de viver minha vida em função de vestibular, e de ler livros em função do vestibular, e de estudar em função do vestibular, e ler notícias de jornal em função do vestibular. Minha vida NÃO É o vestibular. Eu EXISTO. Eu PENSO e não aguento mais submeter minha vida a um sistema de seleção tão furado e atrasado como o vestibular.

E eu estava atrasada para minha adorável aula de redação. Para o vestibular.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A Náusea

Tema: Liberdade do ser e liberdade de ser: a responsabilidade de fazer escolhas


       Solidão, escolha e liberdade formam um dos tripés da existência. O homem percebe-se solitário ao dar-se conta de que deve fazer suas escolhas sozinho, justamente por ter liberdade de fazê-lo, e esse processo de percepção e de escolha gera sofrimento. A liberdade é angustiante.
     Para Sartre, o homem está condenado a ser livre - e nós o somos, forçosamente, mesmo que essa liberdade seja um tanto limitada por nosso momento histórico, por nosso meio e por nossa cultura. Isso devido ao fato de não nascermos prontos, com a essência definida (pois se isso fosse verdade, não teríamos responsabilidade por nossos atos). Ou seja, a existência precede a essência: primeiro vivemos para depois nos constituirmos como seres. Assim, nossas escolhas, e suas consequências, são nossa responsabilidade, justamente por termos tido a liberdade (novamente, mesmo que limitada) ao fazê-las - e isso proporciona a angústia, ou a náusea, como descreve em seu livro homônimo aquele existencialista.
     Se temos liberdade de escolha, deparamo-nos com a angústia de fazê-la. O processo incomoda não pela escolha em si, mas por suas consequências. Um exemplo disso é a opção pelo curso e pela faculdade: os jovens que, indecisos, escolhem suas carreiras orientados pelos testes vocacionais, podem culpar tais testes caso ocorra decepção pessoal.
     A liberdade do ser, além de levar à liberdade de escolha, também nos dá a liberdade de ser (o que quisermos). Porém, a nossa liberdade encontra uma barreira quando nos deparamos com o fato de que o outro também a possui - assim, se somos livres para, por exemplo, vestirmo-nos a nosso gosto, o outro também é livre para condenar nossas atitudes. Esse choque de ideias, intrínseco à vida em sociedade, gera angústia, porque temos a consciência de que ele é fruto da escolha que foi tomada por nós em primeiro lugar (de se ser o que se quer).
     Em suma: a liberdade do ser gera ambas, a liberdade de escolha e a liberdade de ser. As últimas são angustiantes por nos fazerem encarar as responsabilidades e as consequências de nossos atos e por nos mostrarem que somos quem comanda nossas vidas. Mas a liberdade é angustiante, principalmente, pelo fato de nos mostrar que estamos sozinhos em nossas escolhas - condenados à náusea filha da liberdade.

quinta-feira, 29 de março de 2012

meu vocabulário, meu limite

Mais uma dissertação que escrevi, desta vez para a Criar. O tema era "a leitura e a escrita engrandecem a alma".

         O poder da leitura é inquestionável: ela pode ser tanto manipuladora quanto enriquecedora; pode tanto iluminar quanto confundir. Mas, em quaisquer aspectos, a leitura e a escrita são agentes transformadores da nossa forma de pensar - e, quando usadas com o devido senso crítico, facilitam o processo de entendimento da realidade.
        O processo começa com a leitura - nela, é adquirido conhecimento de palavras que dão nome a tudo: ideias, sentimentos, estados e assim por diante. Diante desse conhecimento, o indivíduo faz paralelos com sua própria vivência, e passa a compreender melhor sua realidade, tanto psicológica quanto social e ideologicamente.
        Essa maior compreensão aumenta a variedade de recursos internos do indivíduo, ou seja, ele aprende a lidar melhor com diferentes situações simplesmente por entendê-las. Além disso, o ato de saber dar nomes a ideias e sentimentos, além de ser reconfortante, também melhora a própria capacidade de expressão do indivíduo, tanto na escrita quanto na fala. Ou seja, um vocabulário rico facilita a expressão, o que exige como seu precedente a própria reflexão. Logo, ao melhorar-se a capacidade de expressão, incentiva-se à reflexão.
         Então a linguagem é o caminho para a própria reflexão. Se não existe uma palavra para definir uma ideia, não será possível refletir sobre ela, ou seja, o vocabulário define o alcance do pensamento, como disse Wittgenstein. Muitos outros autores já trabalharam com essa ideia, como George Orwell. Em seu livro 1984, a ideia de criar uma nova língua (intitulada Novafala), com menos substantivos e sinônimos, era justamente de limitar o pensamento dos cidadãos, para que estes não refletissem sobre o sistema em que viviam - o que levaria ao questionamento e à insatisfação, algo que o Estado obviamente não queria.
        Em suma, pode-se dizer que a leitura e a escrita podem ser consideradas processos que engrandecem a alma no sentido de que aumentam nosso entendimento sobre a realidade, facilitando a compreensão de eventos cotidianos e levando-nos a refletir e questionar não só nossos atos, mas também os atos de outrém.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Solidão: perdas ou ganhos?

Este é uma dissertação que fiz na prova de redação do Einstein e é um dos textos meus de que eu mais gostei. Resolvi compartilhá-lo com vocês porque sei lá.

        Solidão é um termo complexo. Para uns, é sinônimo de infelicidade; para outros, é sinônimo de paz e liberdade - para mim, solidão é o estado indescritível de se estar solitário mas não sozinho, e de não aguentar mais ouvir os próprios pensamentos e necessitar dos pensamentos de outra pessoa. Solidão é ser, e esse estado traz inúmeras consequências para a (sobre)vivência do homem em sociedade. Solidão. Sobre o que ela fala mais alto: perdas ou ganhos?
       "O homem é um ser social". Esse aforismo contém a verdade por trás de todas as necessidades não-fisiológicas do homem. Logo, se há a necessidade de se estar em estado de socialização, a solidão é uma barreira para a felicidade. Se reclusão constante e ausência de qualquer relação afetiva - ou seja, se a misantropia fizesse o homem mais feliz, a solidão seria um ganho, e não existiriam famílias nem amizades, nem os próprios conceitos de amor e afeto, o que prova que a vivência em sociedade é inerente ao homem. A solidão, assim, seria uma perda para o homem, uma negação de sua própria natureza.
         Por outro lado, há indivíduos que encontram na solidão conforto e estabilidade - indivíduos que não se encaixam no meio ou no momento histórico em que se encontram, e que consideram a solidão como um ganho: pois é na solidão que se pode ser livre. Tomemos como exemplo Harry Heller, de Lobo da Estepe (Hermann Hesse), que constantemente encontra-se na dualidade homem x lobo - o que dificulta a convivência - e que encontra a paz (uma paz relativa) na solidão.
          Ainda falando de liberdade: "o homem está condenado a ser livre". A liberdade, então é uma libertação e ao mesmo tempo um aprisionamento, assim como a solidão. Nesse caso, a solidão seria ambos: perda e ganho - pois o homem quer ser livre, mas a sua liberdade acaba quando ele se sujeita a regras de convivência social. O que a solidão permite (a liberdade e, portanto - em termos - a felicidade) a socialização oferece (a felicidade).
       Levando em consideração os parágrafos anteriores e seus aforismos, pode-se concluir que a solidão, justamente por ser uma questão tão humana, é absolutamente antagônica, ou seja, traz tanto perdas quanto ganhos. "O homem é um ser social", "o homem está condenado a ser livre" e acrescento "é impossível ser feliz sozinho": qual das três frases fala mais alto, afinal? Nenhuma. A perda não anula o ganho e vice-versa, e o homem deve aprender a driblar essa dualidade tão intrínseca de sua própria natureza.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

loucura

- Ô Felipe...
- Que é?
- O que é ser louco?
- Que pergunta é essa, Lúcia? Louco é louco, ué. É quem não bate bem da cabeça.
- Tá, mas... o que é "não bater bem da cabeça"?
- Ah, menina, sei lá... é quando a pessoa acha que vive num mundo em que ela não vive. Ela vive uma realidade alternativa, que ela mesma montou.
- Mas então ela não sabe que ela é louca.
- É, acho que não.
- Então você pode muito bem ser louco, porque você não se considera louco.
- Ah Lucinha, não é tão simples assim...
- Como não? Se eu quiser ser Édith Piaf, eu vou colocar um vestido preto e vou ser feliz assim. E vou acreditar que sou uma cantora francesa. E você não vai acreditar nem mim, mas quem é você pra dizer que eu NÃO sou Édith Piaf?
- Mas...
- Se o cara que você diz que é louco está feliz, então por que ele é chamado de louco? Loucura não é saber que se é infeliz e continuar insistindo nisso? Não querer mudar de vida e conformar-se com a realidade em que se vive?
- Ah Lucinha, você tá pensando muito filosoficamente pro meu gosto...
- Pensa bem, Fê! Se vivemos em duas realidades diferentes, como eu posso opinar na sua? Quero dizer, é lógico que sua realidade vai parecer errada pra mim, e vice-versa, mas... entende?
- É, sabe, acho que faz sentido... são formas diferentes de se ver o mundo...
- Na minha opinião, louco é aquele que se sujeita à realidade dos outros e que não vive a realidade em que acredita viver. Entende?
- Mas então, Lucinha, como é possível viver em sintonia com qualquer pessoa?
- Enxergando e aceitando a loucura um do outro... mas principalmente, inserindo o outro na sua própria realidade...
- Certo... mas como é possível definir loucura sem se definir a razão? É possível uma pessoa ser inteiramente louca?
- Não, eu vejo a coisa de forma Machadiana... de que as pessoas têm um núcleo de loucura... alguns são maiores, outros menores. Então todos temos nossos momentos de... sanidade, por assim dizer, e é o que nos permite viver em sociedade. Expressamos nossa loucura quando fazemos o que queremos fazer.
- Lucinha...
- Que foi?
- Você tá muito louca.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

por uma vida musical

Enrolada no meu cobertor, tomando um chá e ouvindo clássicos de jazz, eu praguejo mentalmente sobre como eu queria ter nascido em outra época. Na época em que ainda se dançava, a música ainda era feita com instrumentos e que o mundo ainda girava devagar. Penso sobre como eu me encontro num momento descompassado e sem ritmo.
Eu queria que minha vida fosse perfeitamente compassada e doce feito uma valsa, segura, estável e feliz. Queria aprender a acertar os tempos quando minha vida alterna de um adagio para um vivace. Queria que minha vida fosse mais Debussy e menos Béla Bartók. Queria que os acontecimentos da minha vida fossem mais legatos do que stacattos. Queria que minha vida parasse de combinar tanto com músicas de Édith Piaf. Queria que as coisas boas tivessem a duração de uma breve, e não de uma semifusa.Queria me livrar dessas constantes barras de repetição, quero mudar de movimento, e quero viver menos no pianissimo e mais no fortissimo. E o mais importante, eu queria que minha vida fosse regida por um maestro profissional, experiente e expressivo, e não por uma menina tonta que não sabe nem o que quer almoçar no dia seguinte.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Day 5 — Your dreams

Oi, sonhos.
Vocês me dão muito trabalho, sabe... vocês vão longe, longe demais, tão longe a ponto de eu perdê-los de vista e desistir pra sempre de reencontrá-los... eu só queria que vocês se definissem, que ficassem aqui perto de mim e perto do chão, e que parassem de mudar tanto de tonalidade e intensidade. É difícil escolher o que eu quero pra mim, pra minha vida e pra minha carreira se vocês não se definem também, entendem.
É claro que o que eu mais queria era poder seguir todos, mas alguns de vocês estão tão altos que minhas tentativas de segui-los acabaria na cena ridícula de uma menina sonsa pulando em vão pra tentar alcançar algo que só se distancia dela. Miserável. Então, olhem, eu fico realmente triste e ter de lhes dizer isso, mas eu só posso ficar com um por vez; o resto de vocês deverá ficar numa prateleira, quietos, até que eu tenha capacidade e força suficientes para realizá-los. Eu sei, isso é triste, e eu, de todas as pessoas no mundo, sou a que mais quer realizar todos de uma vez, conseguir tudo de uma vez, com certo prazo, aliás. Mas era preciso - é preciso - tomar uma boa dose de Realidade de vez em quando (não sempre, não todos os dias, pois corre-se o risco de a vida se tornar chata, monótona e insuportável).
Alguns de vocês foram abandonados há tempos, alguns são novos, alguns nasceram num dia e morreram no dia seguinte, e são poucos que sobreviveram/resistiram a todos os tipos de provações e decepções que eu já vivi. Alguns de vocês são extremamente realistas, alguns são vergonhosamente materialistas, alguns são ridiculamente adolescentes e alguns são tão corajosos e ambiciosos que fazem-me refletir de onde eles saíram. Alguns de vocês são expectativas e planos que moldam uma futura Bruna, um futuro marido, uma futura família, uma futura casa, um futuro emprego... e alguns de vocês vão mais longe e querem que eu entre para a história, de alguma forma (boa)...
Mas o que eu realmente quero dizer é: obrigada por existirem. Obrigada por darem sentido à minha existência; sem vocês eu provavelmente estaria num poço de descrença e melancolia. Por mais que alguns de vocês me façam perceber o quão insignificante eu sou na esfera macro - mundial -, outros me mostram que a esfera micro também merece atenção, e que toda contribuição para a melhoria dessa esfera é válida. Muitos de vocês me fizeram questionar acerca dos meus valores e da minha  moral; e alguns dos meus momentos de maior amadurecimento são quando eu tenho de repensar meus sonhos e metas.
Novamente, obrigada. De verdade. E por favor, não me abandonem nunca, pois vocês fazem grande parte de quem eu sou.
Bruna.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

not too late

(pra ser lido com esta música de fundo: not too late - norah jones)

"Kira, você tá bem? eu ainda to acordado, quer que eu vá aí pra sua casa?"
"Saí de casa, Gui. Minha melhor amiga insistiu demais pra que eu saísse, então eu cedi."
Mensagem enviada.

Eram cinco e meia da manhã. Ela por sorte encontrou um café aberto, comprou um capuccino para viagem e saiu vagando pela rua. Loucura andar às cinco e meia da manhã sozinha na Nove de Julho, mas o tempo pedia pra que ela ficasse. Os primeiros raios de sol apareciam no horizonte, e as gotas de orvalho se misturavam com as gotas de chuva ralas que caíam incessantemente. Ela olhou para o termômetro mais próximo. Dezesseis graus. Mas a atmosfera, sem dúvida, era bonita. Poucos momentos do dia são tão bonitos quanto aquele que vêm logo antes do amanhecer.
Uma bebida quente pra derreter o coração gelado, congelado, e restaurar suas esperanças já derretidas. O que aconteceu? Mais uma decepção... quando se tem decepções demais você acaba se acostumando, mas ela dessa vez realmente achava que ia ser diferente.

"Você quer que eu vá aí ficar com você, Ki? To indo trabalhar daqui a pouco, posso sair mais cedo pra tomar café com você."
"Não, mana, não precisa. Estou bem."
Mensagem enviada.

Sim, todos eles sempre falam que são diferentes, que vão ser diferentes, e as mulheres que ainda têm alguma pureza, inocência e decência no coração sempre acreditam. Os efeitos de uma decepção se tornam ainda piores quando se é romântica. Aí parece que o seu mundo vai acabar. Sim, mudar é muito difícil, mas primeiramente é preciso assumir que a mudança é necessária. E ele a iludiu, a iludiu durante todo o tempo que a curta relação durou. Mas Kira, por mais que queira deixar transparecer uma força que com certeza existe dentro dela, é frágil. Não fraca, mas frágil. E, sabe, deveria ser um pecado decepcionar pessoas como Kira.

As nuvens foram se dissipando, embora ainda chovesse.

Mas ela continuou andando, respirando aquele ar gelado e eventualmente dando um gole em seu capuccino que não poderia estar mais doce. Ela sabia que eventualmente ia ficar enjoada da bebida justamente por ser doce demais. Será que esse era seu problema? Doçura em excesso? Sim, ela pensou, eu acho que devo começar a ser mais amarga, mais enjoada, vou confiar menos e esperar menos das pessoas, ah, vou. Mas, Kira, se fosse assim tão fácil mudar um caráter tão pueril. Ela começou a sentir frio. Desejou ter pego aquele casaco flanelado que estava pendurado atrás da porta, mas sua cabeça estava em outra órbita.

A chuva agora mal podia ser sentida.

O volume de carros começou a aumentar. Kira parou numa pracinha e sentou-se num dos bancos. Estava molhado, mas ela não ligou. Ela ainda sentia como se seu coração tivesse diminuído de tamanho, como se a capacidade volumétrica do seus pulmões tivesse diminuído, estava difícil de respirar, estava difícil conciliar a respiração com as tentativas falhas de reprimir o choro... é claro que na sua cabeça a única coisa que acontecia era uma discussão entre sua consciência e sua vontade. E é claro que a consciência estava ganhando, e dando uma lição de moral na vontade, e dizendo a Kira que ela precisava deixar de ser estúpida, e que ela agora tinha mais é que levantar a cabeça. A cada gole de café a discussão ia ficando menos intensa, seus nervos começaram a se acalmar. Terminar um relacionamento às quatro da manhã por skype não é fácil, ainda mais quando não foi você quem terminou. Ah, Kira, mas se todos fossem igual a você, o mundo seria melhor.

O sol começou a aparecer... o ambiente estava confuso: os raios de sol com certeza mostravam que queriam aparecer e limpar o céu, mas a chuva persistia em ficar ali, e essa bonita indecisão durou tempo suficiente para Kira terminar de tomar seu café.

Ela estava se levantando quando viu seu melhor amigo, Guilherme, aproximando-se dela.
- Eu queria te ver, aí recebi sua mensagem falando que você não estava em casa, então vim direto pra cá.
- Como você sabia que eu estaria aqui?
- Porque seu café preferido é a alguns quarteirões daqui, e você adora beber café quando está triste. E você me trouxe aqui quando a Aline terminou comigo, também.
Pela primeira vez em alguns dias, Kira esboçou um sorriso.
- Me dá um abraço, Ki.

A chuva parou por insistência dos raios de sol, que finalmente saíram do horizonte e agora iluminavam a cena com força.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Day 27 — The friendliest person you knew for only one day

Não sei como começar esta carta. Eu nem sei o seu nome.
Não sei o seu nome, não sei onde você nasceu, o nome dos seus pais, se você tem irmãos, se você já voltou para o Brasil, se sua vida deu certo, se você está feliz ou se você sequer lembra de mim.
Só sei que nosso encontro certamente me marcou. E olha que foi uma grande coincidência, pois eu não devia ter sentado do seu lado, mas como eu não tinha onde sentar, colocaram-me lá. E tudo bem que grande parte da viagem nós nos ignoramos, mas ao ver aquele aviãozinho se aproximando do continente na tela - e você cedendo aos meus pedidos e finalmente abrindo a janelinha - acho que uma luz de animação se acendeu tanto dentro de mim quanto dentro de você.
Lembro-me que você devia ter entre vinte e cinco e trinta anos, e que ia para Londres a trabalho e estudo, ficar seis meses. Lembro-me muito bem do brilho fugaz nos seus olhos que traduzia o medo, a excitação, a ansiedade e o terror de estar vivenciando aquilo. Você me disse que nunca tinha ido a Londres e que nunca tinha tido a oportunidade de conversar em inglês com ninguém, mas que a vida era assim, ter de encarar as experiências com os olhos e ouvidos atentos e o coração e a mente abertos.
Lembro-me de quando você abriu a janelinha e ficou olhando lá para baixo. Após alguns momentos de intensa observação, você virou e me disse "lindo, né?". E esse "lindo, né?" deve ter sido um dos únicos "lindo, né?" sinceros que eu já ouvi na minha vida, porque dava pra sentir na sua voz que você realmente estava maravilhado, deslumbrado por aquela imensidão de mar e costa, que aquilo era realmente novo e que você estava realmente aproveitando a viagem em que você ia embarcar e que nem tinha começado ainda. Pois esse "lindo, né?" não é um "lindo, né?" que se fala quando se vê um sapato bonito, ou óculos de sol bonito, ou um rapaz bonito; é um "lindo, né?" que se diz quando não se consegue achar outras palavras pra expressar o que se está sentindo então recorre-se para frases populares e encarrega-se a voz de dar todo o sentimentalismo contido naquilo. A voz, o olhar, e a respiração contida antes de dizê-lo. Devo dizer, até aquele momento eu não tinha tido um momento "lindo, né?", mas passei a tê-los frequentemente. Passei a admirar mais a beleza das coisas e a dar mais valor para o que eu tinha e tenho. Afinal, eu estava indo para a Inglaterra pela primeira vez com 15 anos, e aquele moço só conseguiu fazê-lo depois de formado e estando trabalhando.
O avião pousou. Todos começaram a se levantar para pegar suas bagagens de mão. Você me ajudou a pegar a minha (que por sinal devia estar no limite de peso) e quando fomos liberados a sair do avião, olhei para você e disse sinceramente "boa estadia, espero que tudo dê certo", e você respondeu "boa viagem, aproveite".
E a última vez que eu o vi foi andando de um lado para o outro no aeroporto olhando freneticamente para seu celular, e quando estava no avião para voltar para o Brasil me peguei pensando onde você estava naquele momento.
Querido estranho, obrigada pelas 12 horas de vôo que passamos juntos e por me fazer rever meus valores do que é lindo e do que precisa ser realmente valorizado. Acho que o mundo ficou mais bonito depois do seu comentário a respeito da costa de Portugal e do mar. Não tenho palavras para lhe agradecer suficientemente, pois se teve algo que tornou minha estadia em Swanage inesquecível foi o fato de eu ter parado para apreciar o pôr-do-sol de cada dia e o mar indo e voltando. E todo dia eu me pegava pensando "lindo, né?".
Com carinho, 
A menina que sentou ao seu lado  no vôo de ida para Londres no começo de Julho de 2010.

domingo, 1 de janeiro de 2012

day 30: your reflection in the mirror

Como posso começar?

Cara Bruna,

  Eu tenho muitas coisas para falar-lhe. Não sei por qual começar. Primeiramente, da última vez que a vi você parecia tão abatida, tão desesperançosa, que com muito esforço contive meu ímpeto de abraçá-la. Eu perguntaria o que aconteceu, mas sei que você simplesmente responderia "a vida; a vida é que aconteceu".
  Sei que temos muitos assuntos mal-resolvidos, grande parte de nossos problemas caíram em oblívio, o que permaneceu foi aquele sorriso forçado e a frase dita em um semi-sussurro "está tudo bem". Sei bem que você - assim como eu - é uma criatura absurdamente obstinada, soberba, mas isso tem limite. Veja, todos temos problemas e é perfeitamente aceitável - e saudável - assumi-los e tomar uma atitude para resolvê-los.       Sim, eu sei que seria infinitamente mais fácil esconder-se por trás de uma máscara sociofóbica e antissocial, mas no fundo você é uma alma em agonia desmanchando-se no frio suplicando para que alguém a cubra com seu cobertor de afeto e atenção. Também sei que é mais fácil colocar a culpa na sociedade, nos valores sujos e corrompidos, no vazio niilista e por vezes dadaísta presente nas pessoas, no sistema massacrante capitalista, na mídia e no Jornal Nacional que desinforma... mas este é o comportamento padrão do ser humano: não admitir seus erros e colocar a culpa em outro alguém. Você acha que age muito diferentemente? Pois não age. Em vez de encarar a dor da difícil tentativa (pois ela pode levar a uma mais dolorosa ainda rejeição), você se esconde na conveniente indiferença. O quão patético é isso, Bruna?!
  Olha, perdão. Eu sei que não sou a pessoa mais amável do mundo, também tenho minhas preguiças sociais, também tenho alergia a futilidade e a ignorância, mas pra isso existe homeopatia. A homeopatia da internet, da psicoterapia, dos professores. Algumas horas com um desses pode servir de tratamento por até uma semana, acredite. E quanto ao borbulhar de ideias acontecendo na sua cabecinha e que você insiste em condensar e negar... deixe-o evaporar. Deixe-o borbulhar, esparramar-se no chão. É uma ótima prevenção contra o inevitável enlouquecimento. Eu tenho dó de você, mas não um dó ruim e sarcástico - um dó sincero, daqueles que fazem todo o ar sair dos seus pulmões só de você pensar no sofrimento da pessoa. E eu realmente quero que você melhore, que você mude, que você consiga tornar esse 2012 pelo menos um pouco melhor do que os dois anos que passaram, porque olha... dentre todas as pessoas que eu conheço, você é uma das poucas que merece, que realmente merece pelo menos um vislumbre do que significa ser feliz. E não digo isso porque, bem, você é meu reflexo, mas porque eu sei de tudo por que você passou, o quanto você é forte, e, bem, isso fez-me gostar bastante de você. Ao mesmo tempo que a acho incrivelmente estúpida, miserável e infeliz por você ser uma peça de quebra-cabeça que não sei encaixa em lugar nenhum, admiro-a justamente por isso.
  Então, enfim...
  Por favor. Mais surrealismo e menos barroco na sua vida.
Com todo o respeito,
Bruna S.F.

30 days letter project

Pra me animar a voltar a escrever, decidi fazer isto aqui em Janeiro:


30 days letter project
Day 1 — Your Best Friend
Day 2 — Your Crush
Day 3 — Your parents
Day 4 — Your sibling (or closest relative)
Day 5 — Your dreams
Day 6 — A stranger
Day 7 — Your Ex-boyfriend/girlfriend/love/crush
Day 8 — Your favorite internet friend
Day 9 — Someone you wish you could meet
Day 10 — Someone you don’t talk to as much as you’d like to
Day 11 — A Deceased person you wish you could talk to
Day 12 — The person you hate most/caused you a lot of pain
Day 13 — Someone you wish could forgive you
Day 14 — Someone you’ve drifted away from
Day 15 — The person you miss the most
Day 16 — Someone that’s not in your state/country
Day 17 — Someone from your childhood
Day 18 — The person that you wish you could be
Day 19 — Someone that pesters your mind—good or bad
Day 20 — The one that broke your heart the hardest
Day 21 — Someone you judged by their first impression
Day 22 — Someone you want to give a second chance to
Day 23 — The last person you kissed
Day 24 — The person that gave you your favorite memory
Day 25 — The person you know that is going through the worst of times
Day 26 — The last person you made a pinky promise to
Day 27 — The friendliest person you knew for only one day
Day 28 — Someone that changed your life
Day 29 — The person that you want to tell everything to, but too afraid to
Day 30 — Your reflection in the mirror


...mas não necessariamente nessa ordem.