domingo, 27 de janeiro de 2013

chuva

(continuação)

Ajudada pelo marido, Clarice se levantou e andou até a cozinha para tomarem um café. De lá, ela podia ouvir as pessoas conversando em voz baixa na sala. Sobressaíam-se as vozes de Carolina e Fernanda, mas Rafael e sua mãe também pronunciavam-se. Clarice suspirou. Todos estavam lá, discutindo sua vida, decidindo o que era melhor pra ela, mas é claro que ela mesma nunca era consultada. Sentou-se. Olhou para o fogão.

"Marcelo, onde está a Beta?"

Ele a olhou confuso. "Querida, você não se lembra? Ela se demitiu. Foi tentar formação em enfermaria, esqueceu?"

"Não me lembro de nada disso."
Marcelo respirou fundo e encarou seus pés, desconfortável. "Acontece que um dia você estava especialmente... bem... afetada, e Beta disse que não aguentava mais vê-la daquele jeito. Disse que queria ser capaz de ajudar. Então foi tentar fazer faculdade de enfermagem, para ajudar as pessoas. É isso."

Clarice bebericou seu café, desviou seus olhos do fogão e fixou-os nos do marido. "E quanto à Clara?"
"O que tem ela?"
"Você sabe, Marcelo. Na escola. Quero dizer, não é possível que a notícia de meu surto não se espalhou."
Ele passou a mão na testa, ainda mais desconfortável. Era difícil expor a verdade, assim, nua e crua, sobre todas as consequências do colapso de sua esposa. Ele não queria que ela se sentisse culpada, mas também sabia que, sendo quem era, ela precisava saber de tudo. "Bom, querida, algumas mães ficaram sabendo, então seus filhos começaram a mexer com nossa filha... uma ou outra professora tentou conter a sala, mas outras eram partidárias de que você mereceu, de que você precisava de freios. Então eu a tirei daquela escola."
Ela tentava conter as lágrimas que afloravam ao pensar em tudo por que sua filha tinha passado. Ela certamente não merecia nada daquilo. Mas pessoas são cruéis, crianças são cruéis. Tomou mais um gole do café. "Então onde ela está estudando agora?"
"Eu descobri que um colega seu, do conservatório, era professor de música em uma escola não tão conhecida. Fui conhecê-la e gostei. Aparentemente, esse seu colega impediu que os fatos sobre você se espalhassem e fez uma dinâmica muito interessante com as crianças sobre fenômenos mentais, psicológicos. Foi bem interessante, e de grande ajuda. E Clara está feliz, acima de tudo. Só tem um problema."
Clarice olhou para fora e viu sua filha correndo até o balanço na árvore e sentando-se. Ela tinha uma rosa amarela na mão.
"Ela não suporta ouvir violinos, Clarice. Na verdade, até orquestras a incomodam. Acho que, na cabeça dela, a música é culpada pelo que aconteceu com você."
"Ah, a culpa não é da música. É minha. Eu gostaria de dizer que não, mas... se não fosse minha, de quem seria?". Descansou sua xícara na mesa e levantou-se, indo em direção à sala. Parou na porta que dividia os dois ambientes. "Vem comigo?"
"Eu estou logo ao seu lado."
Abriu a porta.

Todos pararam de falar. Carolina, que estava sentada, levantou-se num salto e foi correndo até sua irmã. "Eu não queria que tudo isso acontecesse, irmã. Eu só queria presentear-lhe, e sempre achei que você levasse jeito pra escrever, e..."
Clarice interrompeu-a, segurando-a pelos ombros. "Carol, você fez certo."
"Mas você está diferente, e eu não sei se isso é bom ou ruim, e..."
"Carol, isso é bom, muito bom."

"Mas..."
"Carol, eu precisava disso. Precisava do seu presente, e do livro de Fernanda, e das flores de Alice. Eu precisava de tudo isso pra me lembrar de quem eu sou, de quem eu fui.". Ela apertou as mãos em seus ombros, depois a abraçou. "Vai ficar tudo bem. Muito obrigada."

Então, dirigindo-se a todos da sala, aumentou a voz. "Obrigada por terem vindo. Obrigada por hoje. Obrigada, Carol, Alice e Fernanda, por terem fornecido o combustível, e mamãe, por ter fornecido a faísca que proporcionaram a explosão interna que me acordou. Agradeço por mim e por minha família.". Cumprimentou todos com um abaixar de cabeça, foi até Alice e beijou-a na testa, pegou sua filha pela mão e retirou-se.
Chovia.

Agora Clarice dirigia-se à porta da frente. "Menina, seu pai me contou que você não gosta do som do violino."
Clara fez uma careta. "Não gosto, mamãe. Me incomoda. Acho que sinto dor."
"Bom, nós vamos mudar isso, não vamos? Porque você adorava quando mamãe tocava violino, e eu talvez volte a tocar um dia. Nós precisamos de música, criança. E não se preocupe, mamãe não vai desmaiar toda vez que chegar perto de um instrumento."
Clara balançou a cabeça.

"Por falar nisso, você tem vontade de aprender a tocar alguma coisa?"
A menina desviou os olhos, olhando para frente. "Você vai ficar brava se eu não quiser tocar violino?"
Clarice abaixou-se para ficar na altura na menina. "Claro que não. Você tocará o que quiser, quando quiser. A escolha é só sua."

Ela sorriu. "Eu queria saber tocar piano." Clarice devolveu o sorriso e levantou-se. Saíram pela porta da frente.

"Clarice?", a voz de Marcelo interrompeu seu pensamento. "O que você vai fazer agora?"
Ela parou. Não estava pensando, na verdade um grande vazio apossava-se de sua mente; agora que tinha se libertado de antigos pensamentos, sua cabeça tinha espaço livre pra ocupá-lo como bem entendesse. "Eu não sei, e gosto disso. Vou fazer o que eu quiser. E, agora, eu quero andar na chuva.". Ela soltou a mão de sua filha, soltou a mão de seu marido, e saiu pela porta da frente.

Chovia, mas também fazia sol, e Clarice andou por sua rua com seu melhor vestido de festa.

-fim-

sábado, 19 de janeiro de 2013

não se afogue, clarice

(continuação)

"Tia, você não gostou?"
Clarice abriu os olhos e viu que a menina ainda esperava sua palavra final. "Mas é claro que eu gostei, pequena. Elas me trazem boas memórias.". Sorriu para Alice, que enrubesceu e se deu por satisfeita.
"Eu também lhe trouxe algo". Dessa vez foi Carolina, sua irmã, que se pronunciou, entregando a Clarice uma caixa, que a abriu. Dentro, havia uma caneta tinteiro e muitas folhas de um papel muito bonito. Olhou para a irmã, intrigada. "Sempre achei que você escrevia muito bem. Sei que você parou para se dedicar à música, mas agora, bem...", e então ela deu uma pausa para escolher as palavras com cuidado: "agora você tem tempo.". Clarice sorriu para ela. Escrever. Sim, era uma ideia muito interessante.
"Carolina!"
Do outro lado da sala, a mãe levantou-se bruscamente da poltrona em que estava sentada. "Você está louca? Dando essas ideias pra sua irmã, que já está tão frágil?"
"Como, mãe?"
"Se ela está assim letárgica sem ter de fazer esforço mental nenhum, imagine se tiver que começar a pensar, para escrever! Você está louca!"
Essa última frase ecoou pela sala. E, após um curto silêncio, várias vozes começaram a falar ao mesmo tempo.
"Mãe!"
"Diana, é de sua filha que você está falando!"
"Clarice precisa de um tempo para se recuperar!"
"Minha esposa não está letárgica, ela está traumatizada!"
"Eu não estou fazendo esforço mental nenhum?". A voz fraca de Clarice estava forte e clara, apesar de baixa, quase um sussurro. "Você acha que eu não penso, mamãe? Bem, então vou te contar como tem sido minha vida há seis meses. Todos os dias eu acordo frustrada por ainda estar viva. Todos os dias eu sinto o cheiro de hortelã entrando pela minha casa e me lembro que ela foi plantada no maldito dia que estragou minha vida toda. Todos os dias eu sinto uma dor de cabeça que me diz claramente que eu não estou nem um pouco feliz. Do momento em que eu abro os olhos até o momento em que eu os fecho, sinto-me culpada por não ser a mãe que minha filha merece ou a esposa que meu marido merece. Todos os dias, mas todos os dias mesmo, eu me sinto completamente inútil por ter perdido a habilidade de fazer a única coisa que eu fazia sozinha e que ainda fazia meus olhos brilharem, que ainda me fazia esquecer de quem eu realmente era. Hoje me sinto completamente vazia e ainda não sei com o que preencher essa ausência de não sei o quê. Mas eu não posso trabalhar fora de casa, pois eu mal escuto meus próprios pensamentos, como vou seguir ordens? Já tentei me matar, mamãe. Duas vezes nos últimos seis meses. Nessas ocasiões, esse vazio tomou conta de mim de forma tão ntensa que eu não via nenhuma outra solução além de me entregar completamente a ele. Mas se você acha que eu estive assim só nesses últimos meses, engana-se. Engana-se porque eu a enganei, porque eu enganei a todos, porque eu fiz todos acreditarem que eu estava feliz. E eu conseguia fingir muito bem, durante um tempo consegui até me enganar, mas no dia em que eu subi no palco e vi meu marido e minha filha olhando para mim com tanta admiração, tanto orgulho, tanta expectativa, tanto amor, que eu não consegui mais suportar o peso da mentira e sucumbi. Eu... sucumbi. Desde aquele dia, sinto que parei de me afogar em minha própria culpa por esconder minha infelicidade. Agora eu só nado nela. Às vezes consigo até boiar nela. Mas ela ainda está aqui. A culpa, a miséria, o sofrimento. A única diferença é que agora vocês conseguem ver minha verdadeira essência porque eu não tenho mais forças para escondê-la. Então, mamãe, prazer em conhecê-la. Eu sou sua filha. E eu penso. Até mais do que o necessário."
Carolina e Fernanda a encaravam com piedade. "Parem de me olhar assim. Odeio que sintam pena de mim.".
Marcelo a olhava completamente derrotado. Sentia que havia falhado com ela em todos os sentidos. "Marcelo, não é sua culpa. Eu sou assim. Mas posso garantir-lhe que as experiências que eu tive de felicidade foram ao seu lado. Por favor, não se culpe."
Rafael andou até Clarice e segurou-lhe as mãos. "Por favor", ele dizia cada palavra entre engolidas em seco, "por favor, não nos deixe. Eu não sei o que eu faria sem você. Por favor, Clarice, você é a pessoa mais forte que eu conheço. Se você desistir..."
Ela acariciou o rosto jovem do irmão. "Você é muito mais forte do que eu. Quem de nós teve que ver a própria irmã ter um surto psicótico?". Então andou até Carolina. "Eu adorei a ideia de escrever. De verdade. Talvez fazê-lo seja como usar um colete salva-vidas no meu mar de sofrimento. Muito obrigada por ter tido a coragem de me dar isto", disse, batucando com seus dedos na caixa.

"Quanto a você", ela disse, abaixando-se para ficar na mesma altura de Alice, "muito obrigada por me fazer acordar."

Ela saiu andando da sala, ignorando o protesto em forma de silêncio que se formava a cada passo que ela dava. Atravessou a cozinha e saiu pela porta dos fundos. Devia ser pouco depois do meio-dia. A claridade já não a incomodava mais. Na verdade, pela primeira vez em muito tempo, Clarice se sentiu abraçada pelo sol. Estava se sentindo meio tonta, seus sentidos estavam mais atinados, era realmente como se ela tivesse acordado de um sono muito longo. Deitou-se na grama. O cheiro da hortelã ainda estava ali - mas agora era agradável. Era uma sensação muito boa. Não que ela estivesse feliz. Mas também não estava miserável. Seu coração só não estava mais tão apertado. Não doía mais pra respirar. Verbalizar suas sensações tinha ajudado a colocá-las em ordem. Seus pensamentos não mais fluíam sem curso nenhum - agora ela sabia falar de onde todos vinham e aonde iam.
Respirou fundo.
Ela conseguiria dormir ali.
Estava tudo tão quieto. Será que foram embora? Clarice não ouvia nada além do vento, de alguns pássaros e do bater de asas de uma borboleta que passava por ali. Isso era possível? Quero dizer, ouvir as asas de uma borboleta. Acho que não. Devia estar enlouquecendo. Mais? Difícil. Ah, diabos, qual era o problema de se ouvir as asas de uma borboleta? Virou-se de lado - agora ela encarava a árvore em que o balanço de sua filha estava pendurado. As folhas mal se mexiam com o vento. Era uma árvore grande - estava ali, de pé, mesmo após tantas tempestades, raios, ventanias. Essa árvore, sim, devia servir de modelo às pessos. Clarice, não diga besteira, como uma árvore serviria de exemplo a humanos? Começou a rir sozinha. E, rindo sozinha, não percebeu Marcelo se aproximando. Está tudo bem, Clarice? Precisa de ajuda, Clarice? Está frio, Clarice. Vá dormir, Clarice. Por que está rindo, Clarice? Você está doida, querida! Ela se sentou.
"Eu não estou doida e não preciso de ajuda."
"Não ia oferecer ajuda. Você claramente não precisa de ajuda. Nunca a vi ser tão verdadeira. E, na verdade, ia oferecer uma xícara de café. Quer? Reza a lenda que escritores fazem bom proveito de café". Clarice levantou a cabeça para encará-lo. "Muito bem. Que tomemos café."

(continua)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

rosas amarelas

Muitas vezes sua própria casa lhe parecia estranha, desconhecida. Agora, mesmo, ela estava sendo guiada pelas mãos como uma criança por seu marido - pelo corredor, descendo as escadas, virando aqui e ali, até chegar à sala de visitas.
Todos estavam ali. Bem, não todos literalmente - apenas os que não haviam renegado Clarice após seu colapso. Seus pais, seus irmão e irmã, sobrinhos e sobrinhas, até a irmã de Marcelo (e seu marido, e sua filha)... todos ali, para vê-la, para acompanhar sua dita recuperação, para mostrar-lhe que se importavam com ela...
Sem ela os ter chamado.
A última coisa que Clarice queria era que essas pessoas, que ela tanto amava, a vissem daquele jeito. Ela sentia que o que motivava alguns a ainda visitá-la era pena; outros, saudades de como ela um dia fora. Mas ninguém queria vê-la simplesmente por vê-la. E isso machucava muito.

Um violino.

Passaram por um violino.

Clarice esticou a mão para a frente, esticou os dedos, como se numa tentativa de alcançá-lo, mas ele estava longe - ou será que não estava, num primeiro momento, mas afastou-se dela? Com o braço ainda esticado, começou a dedilhar algumas músicas. Ela podia sentir os calos em seus dedos, podia lembrar-se da sensação de apertar os dedos contra as cordas, quase conseguia ver a música que dançava ao seu redor, em sua memória. Que saudades de tocar violino. Que saudades da música. Não se lembrava da última vez que havia ido a um concerto, a uma ópera. Sentia falta disso. Sentia falta da música. A mesma música que um dia deu-lhe tudo, e que num outro tirou-lhe tudo.

"Clarice, por favor, olhe no rosto das pessoas quando elas falam com você, sim?", ouviu seu marido sussurrar-lhe ao pé do ouvido, forçando-a a voltar ao presente. Ela olhou-o, depois olhou ao redor, para localizar a quem ela deveria estar escutando. Pela expressão mista de expectativa e de decepção, devia ser Rafael.
"Desculpe por não ter prestado atenção, Rafael. Por favor, repita.", Clarice disse, a seu irmão, de forma um tanto mecânica.
"Eu estava dizendo que você parecia melhor, pequena. E repito o que disse, porque da última vez que a vi sequer ouvi sua voz."
"Sim, eu me lembro... eu me lembro. Você nos visitou na semana em que Marcelo plantou hortelã no quintal..."
Ninguém sabia ao certo como responder a essa constatação. Talvez por não entenderem o que era a hortelã para Clarice.
"Clarice, eu lhe trouxe um presente!", disse, por fim, Fernanda, a irmã de Marcelo. Ela pegou um embrulho retangular e colocou-o nas mãos de Clarice. "Espero que você se entenda melhor ao terminar de ler. E, quem sabe, talvez, mude um pouco a visão que você tem da vida."
Clarice olhou do embrulho para Fernanda, e de volta para o embrulho. Abriu-o como quem manipula um cristal e surpreendeu-se ao ver que o presente era um livro. Hermann Hesse. Ela conhecia o autor - ele recebera o prêmio Nobel de literatura. Devia fazer alguns meses desde a última vez que lera um livro. A última vez fora, bem, antes... daquilo acontecer.
"É normal. Ela às vezes não parece estar na nossa realidade. Mas é só chamá-la de volta que fica tudo bem."
"Eu estou bem aqui ainda, Marcelo."
"Minha filha também tem algo para você, querida.". Fernanda olhou para sua filha, encorajando-a. "Vamos, Alice, mostre para sua tia o que você trouxe."
A menina andou timidamente até Clarice e entregou-lhe um buquê de rosas amarelas. "Elas me lembram você.". Clarice pegou-o das mãos da menina, que não devia ter mais de seis anos; levou-o ao rosto para sentir-lhe o perfume...

...era um dia muito bonito. Ensolarado, colorido, quente. Ela desceu as escadas correndo ao sentir cheiro de calda de chocolate.
"Ah, Beta, vou precisar mesmo de um bolo quando voltar para casa!", disse, rodeando a cozinheira e dando-lhe um beijo na bochecha. "Muito obrigada!". A cozinheira riu e mandou Clarice sair de sua cozinha, pois ela estava atrapalhando. "Se você ficar aqui, a massa não cresce."
Ela continuou andando pela casa, saiu pela porta dos fundos, que dava para o quintal, e viu Marcelo sentado na grama, mexendo com terra. Sua filha, Giovana, brincava no balanço.
"E o que o senhor está fazendo?", ela disse, sentando-se ao lado dele. "Que cheiro maravilhoso..."
"Hortelã. Todos os dias de verão vamos acordar com esse cheiro entrando pela janela. Fui ao mercado comprar as sementes e essas mudas enquanto você estava dormindo. Era pra ser uma surpresa, eu não esperava que você fosse acordar tão cedo.
"Cedo? São dez horas!", ela disse, beijando-lhe a testa e levantando-se para ir de encontro à filha. "E você, o que está fazendo aqui, mocinha?"
"Estava balançando, mamãe. Na verdade, eu estava quase voando.". A menina perdeu impulso e desceu do balanço, abraçando a mãe.
"É uma sensação deliciosa, não é, minha pequena? Quase voar."
"Você já voou, mamãe?"
"Ah, já! Sempre que a mamãe ouve música ela se sente como se estivesse voando. Quando gostamos muito de alguma coisa nos sentimos assim. Quando eu conheci o papai eu me senti assim. Quando você nasceu eu me senti assim."
"O que tem o papai?", Marcelo disse, aparecendo atrás dela. "Para você, querida. Para sua apresentação de hoje.", dizendo isso, entregou-lhe um buquê de rosas amarelas. "Eu sei que elas trazem sorte".
"Com certeza, meu amor.", e Clarice beijou os lábios do marido. "Vamos, precisamos comer alguma coisa, pois saímos em uma hora.". Giovana pegou sua mão. Marcelo colocou o braço em torno da cintura dela. Clarice fechou os olhos para ter um registro disso para sempre.
Era como se ela soubesse que, duas horas depois, ela estaria deitada inconsciente no palco do maior teatro da capital.

(continua)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

lavanda

r-r-r-r
r-r-r-r
r-r-r-r
r-r-r-r

Clarice acordou com toque do despertador quebrado. Tirou a máscara de dormir dos olhos; arrependeu-se - quanta claridade, seus olhos até doíam. Fazia um tempo desde a última vez que vira a luz do sol. Olhou para o lado - Marcelo já havia levantado. Olhou para o outro - lírios brancos. Que brancura. Que vida. Que perfume.

Que dor de cabeça.

Era seu aniversário.

Ouviu passos pelo corredor. Foram ficando cada vez mais altos e passaram reto pela porta de seu quarto; depois pararam e voltaram.
"Ah, ótimo! Você acordou". Ele foi até ela e a beijou na testa. Sua cabeça quase explodiu; por que ele falava tão alto? "Está se sentindo melhor? Sua família está chegando para o almoço. Apronte-se.". Falou isso segurando o queixo de Clarice e saiu, fechando a porta.

Que dor de cabeça.

Levantou-se de lado e colocou os pés no chão. Sentiu um arrepio ao sentir o piso frio em vez de suas pantufas. Tateou-o um pouco até achá-las e as pôs. Abriu o armário, não se sentiu atraída por aquelas roupas, não se sentiu disposta para trocar-se, e, por fim, colocou o roupão por cima da roupa de dormir. Mas que claridade!, o sol emitia tanta luz assim sempre? Como é possível não se incomodar?
Ela pensara, depois de ontem, que tinha se libertado. Ela pensara que deixar o sangue escorrer um pouco fosse fazer seus fantasmas escorrerem para fora de seu corpo com ele. Olhar o líquido espesso e vermelho descer por seus dedos e gotejar no piso branco do banheiro fora relaxante, a sensação de transbordamento acabou. Sentiu-se com a cabeça leve, e por um momento não pensou em mais nada além da própria respiração. Se é assim que a morte é, então era realmente o que ela achava. Até que tudo apagou. Acordou em sua cama, com curativos no braço. A sensação de leveza foi creditada à falta de sangue e de oxigenação no cérebro; a preocupação com a respiração foi definida como instinto de sobrevivência.
Antes de descer e ter que lidar com tudo aquilo, tentando ignorar seu incômodo com a luz do sol, Clarice foi até a janela e abriu-a. Foi invadida por um cheiro de lavanda que conseguiu alcançar os cantos mais sombrios e escondidos de sua memória - memória de tempos em que ela fora feliz, sem tormentos, sem dúvidas, só a certeza de uma vida pela frente. Argh, que vontade de vomitar. Felicidade - que raiva, que ódio. Por que ela tivera sua dose de felicidade? Tudo seria mais fácil se ela não tivesse experimentado de sua essência. Assim, ela não saberia que é infeliz. Assim, não escutaria em sua cabeça um eterno papagaio com transtorno de ansiedade dizendo "braaah, você é infeliz, braaah, você é miserável".
O sol queimava sua pele. A luz insistia em tentar penetrá-la. Mas Clarice não queria deixar.
De um instante pra outro, uma corrente de ar decidiu entrar pela janela, trazendo consigo aroma das flores do jardim de Clarice, da hortelã que Marcelo plantara, do bolo de chocolate sendo feito na cozinha, além de ter carregado algumas folhas secas para o parapeito da janela. Olhando aquelas folhas sendo carregadas pelo vento, sentiu um impulso de misturar-se a elas, de se tornar também uma folha seca, cujo rumo é decidido apenas pelo vento; sentiu um impulso de fundir-se àquele vazio, àquela ausência. Fechou os olhos. Parece que, ao fazê-lo, perdeu um pouco da sensibilidade ao sol, à luz, e sua pele parou de arder. A luz, as folhas, a hortelã, a lavanda. A calda do bolo de chocolate. Murmurava palavras incompreensíveis para si mesma, ou talvez para o vento levar aos ouvidos de alguém.

"Clarice, você está me ouvindo?". Foi trazida de volta à real realidade pelas mãos de Marcelo em seus ombros. "Estou falando com você há certo tempo, sabia?". Ela tinha o olhar confuso, mas balançou a cabeça. "Você nem se vestiu ainda, Clarice. Vamos, eu a ajudo."
"Marcelo...", sua voz saiu como um sussurro. Ela sentiu que teve de fazer um esforço muito grande para sair de seu próprio mundo e conseguir pronunciar o nome de seu marido. Foi como se ela tivesse de emergir muitos metros para chegar à superfície da água, onde se encontra a realidade. Ele parou e encarou-a, incentivando-a a continuar falando. Clarice permaneceu ali, de boca aberta, sem saber por que razão abrira a boca - ela sabia que queria falar com ele, mas não sabia sobre o quê, nem por quê. "Eu... eu queria..."
"Sim, querida?". Essa palavra a desestruturou completamente. Sentiu-se muito culpada, por qualquer motivo, e abaixou a cabeça, para encarar os próprios pés.
"...queria agradecer-lhe pelas flores. Sei que sabe que são minhas preferidas. Obrigada pela demonstração de atenção.". E tentou sorrir.
Ele retribuiu a ação, beijou-lhe a testa e abriu o armário. "É seu aniversário de trinta e cinco anos, você precisa estar bonita. E não se preocupe, Clara já está pronta."
Passos suaves e ritmados que andavam pelo corredor pararam à porta. "Chamou, papai? Ouvi meu nome.". A menina tinha grandes olhos castanhos amendoados. "Está melhor, mamãe? Fiz um desenho pra você."
Ao olhar para aquela menina, aquele projeto de indivíduo, aquele pedaço dela mesma, a vontade de fundir-se às folhas esvaiu-se, e tudo o que Clarice queria era fazê-la feliz, fazê-la tão feliz que ela nunca precisaria ter lavanda plantada no jardim. Mas não se sentia capaz pra fazê-lo. Na verdade, sabia que não era capaz. Nem sua filha, nem seu marido saberiam o que é felicidade estando a seu lado. Se eles fossem livres, talvez pudessem aproveitar a luz do sol e o cheiro da lavanda.

Mas essa dor de cabeça...

..continua

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

now you say you're sorry

O delegado abriu a porta da sala de interrogatório. Vitória podia ver seu vulto, com os ombros pesados e os punhos cerrados.

"Eu tinha de ver com meus próprios olhos. O que você está fazendo aqui, Vitória? Como foi deixar isso acontecer?"
"O quê, Paulo? Ele quis se matar. A vida é dele, quem sou eu pra impedir?"
"Você é uma médica, isso que você é! Agora vai ter de enfrentar uma acusação de homicídio doloso, porque você foi negligente!"
"Se eu não fosse médica, eu estaria passando por isso?"
"Provavelmente não"
"Por que não? Qualquer um sabe que cicuta é veneno, e que veneno mata."
"Mas você é médica e podia - aliás, devia ter prestado socorro."
"Prestar socorro? Ele não pediu socorro!"
"Vítimas de acidentes também não pedem socorro"
"Vítimas de acidente não são suicidas, mentalmente instáveis, totalmente doentes!"
"Olha, Vitória, a questão é que é seu dever prestar ajuda a quem visivelmente se encontra na iminência da morte."
"Eu acho que é meu dever ajudar a quem pediu ajuda, ou a quem está à beira da morte por culpa de outra pessoa que não elas mesmas. Não é meu dever impedir um suicida de realizar seu desejo."
"Se ele era totalmente doente, então ele não estava em pleno juízo para tomar decisões, logo, não era responsável pelas consequências de seus atos. Sendo a consequência, bem, a morte, e a responsabilidade não é dele, então de quem é?
"Não sei, de deus?, por tê-lo colocado justo no meu caminho?"
"Sua, Vitória. Sua. Muito sua, porque você sabia de ambas a condição psicológica do homem e suas intenções quando ele foi à sua casa. Então eu  não diria que você foi apenas negligente... você foi egoísta. Desumana."

Vitória poderia ter saído da cadeira num pulo e parado no pescoço do delegado perante aquela afirmação, mas decidiu manter-se calma, no aparente controle da situação. Afinal, não se combate ignorância com ignorância.

"Não, Paulo. O que aconteceu foi que eu fiz um favor a mim, a ele, à humanidade. Ele estava ficando mais louco do que já era e estava me deixando louca também. E se o suicídio foi calculado ou foi puro impulso não faz diferença - ele não precisava da ajuda da minha especialidade médica, mas sim de um psiquiatra. Não havia nada que eu pudesse fazer. Se eu o tivesse impedido de tomar cicuta, ele provavelmente teria tomado alguma atitude agressiva para comigo, começaria um solilóquio interminável, eu o expulsaria da minha casa, ele ficaria atordoado com minha atitude e acabaria sendo atropelado saindo do meu prédio."
"Vitória, nada disso importa. Não existe 'se' em um julgamento. Não existe 'se' quando se trata de morte. O fato é que um homem se matou na sua frente, no seu apartamento, no apartamento de uma médica, e sua falta de interferência equivale ao consentimento e, portanto, à negligência."
"Se eu tivesse interferido e o impedido de se matar, eu estaria cerceando sua liberdade."
"O quê?"
"Sim. Pois o corpo era dele e eu não tinha o direito de dizer o que ele deveria ou não deveria fazer."
"Mas ele era doente mental, Vitória! O corpo não era mais dele, por assim dizer!"
"Então era de quem? Quem deveria tomar as decisões por ele, se ele mesmo não podia fazê-lo?!"
"Eu não sei, Vitória. Eu não sei. E não é minha obrigação saber. Eu só sei, e você também deveria aceitar esse fato, que você não agiu de acordo com seus deveres, e, portanto, vai ser julgada por isso."
"E eu vou refutar isso até o fim, porque ainda acho que a vida é dele e ele faz o que quiser com ela."
"Você está comprando briga"
"Pago à vista"

Paulo, o delegado, saiu da sala batendo a porta atrás de si. Vitória, sabendo que estava sendo observada através daquele espelho, tentava, com todas as fibras de seu ser, conter o impulso de gritar frustração perante aquilo tudo. Ela queria gritar que o canalha merecia morrer, que tudo seria melhor agora sem ele, que agora ela poderia viver de verdade, sem um encosto, sem um fardo, sem um medo constante; mas conteve-se. Respirou fundo, porque era a única coisa que ela podia fazer. Respirar.
Por fim, levantou-se, bateu com a ponta dos dedos duas vezes no espelho, "tenho direito a voltar pra casa enquanto espero, bem, por tudo?"
A porta foi aberta, "tem sim, pode vir comigo".

Entrou na viatura da polícia e foi conduzida até seu apartamento. Não havia mais viatura nenhuma lá, eles provavelmente já tinham levado o corpo embora. Seis horas da manhã, o sol estava nascendo - isso deveria significar alguma coisa? Não, Vitória estava cansada de tentar achar significado pra tudo. Melhor tentar dormir, hoje era dia de plantão.

...cry me a river, cry me a river, I cried a river over you

- FIM -

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

told me love was too plebeian


(continuação)

Remember, I remember all that you said: told me love was too plebeian, told me you were through with me

"Eu vou fazer isso, sabe. Ninguém pode me impedir. Nem você."
"Vá em frente, então."
"Eu falo sério."
"Eu não ligo."
"Bom, eu não esperava que você ligasse. Eu não esperava reação nenhuma de você... porque eu também não ligo - não ligo pra você, Vitória. Nunca liguei. Estive com você por distração. Quero dizer, você realmente acha que eu alguma vez a amei? Por favor, Vitória, um homem como eu amar um projeto de mulher feito você? Amor... amor é pra pessoas carentes, inseguras, que necessitam o tempo todo de aprovação. Eu não preciso disso. Nunca precisei."
"Que bom, cara. Que bom. Assim, vou me sentir menos culpada de ter deixado você se matar na minha frente."
Ele piscou duas vezes. Talvez ele não tivesse considerado a possibilidade de que ela realmente não se importava mais com ele. Seu braço direito, antes esticado para a frente, mostrando frascos na mão - num deles lia-se cicuta -, caiu ao lado do corpo. Cerrou o punho esquerdo. Fechou a boca, antes aberta de espanto.
"Então é isso, Vitória?" - e seu olhar ganhou repetina ternura. Agora que não estava mais embriagada de paixão, compreensão e até certa pena, ela podia ver o quanto ele podia ser manipulador, cruel, mesquinho. Como podia fingir tão bem aquelas emoções? Como conseguia transfigurar seu rosto do nojo, da ojeriza, para a ternura, a doçura?


and now you say you love me. well, just to prove you do, come on and cry me a river, cry me a river... I cried a river over you

"Vitória, olha pra mim. Vitória, você não me ama mesmo?"
"Não. Você me dá nojo. Me dá pena. Quero distância."
"Mas você já me amou"
"Talvez"
"Talvez?", ele agia como se tivesse levado um tapa no rosto. "Talvez? Você não me amou naquele dia em que eu te trouxe aquelas margaridas? Nem no dia em que te fiz uma surpresa no hospital e fomos viajar? Nem no dia em que mandei entregar aqui no seu apartamento aquela cesta de café da manhã? Nem mesmo, Vitória, naquele dia de chuva em que fomos ao parque e eu te empurrei no balanço?"
Mas que ótimo ator. Ela não podia negar que quase, quase se deixou balançar por aquelas palavras. Mas respirou fundo e tentou se lembrar de quem ele realmente era.
"Sabe, você devia ter tentado carreira artística."
O semblante dele se desfez. Voltou aquela expressão transtornada.
"Então está certo. Não sei por que perdi meu tempo vindo aqui."
"Também não sei. Estou ocupada. Você conhece a saída, certo?", e virou de costas. Enquanto andava da sala de televisão até seu quarto, ouviu um baque surdo e inferiu que ele virara o frasco de cicuta. Sentou-se na cama, lixou as unhas. E foi até a varanda. Jogou o maço de cigarros varanda abaixo, e lá ficou, por tempo indeterminado, que pode ter sido um minuto ou uma hora, ela não saberia dizer.

Quanto barulho. Agora não eram mais só as buzinas; parecia haver um grupo andando de forma muito pesada no corredor de seu andar. Passos ritmados. Seria a polícia?
Batidas na porta. "Vitória Fragoso, abra a porta. É a polícia.". Ela andou tranquilamente até a porta, passando cuidadosamente por cima do corpo estendido no chão, e a abriu. "Posso ajudar, policiais?"
"Uma vizinha ligou, disse ter ouvido discussões e ameaça de suicídio. Viemos verificar a veracidade da den..." e então o olhar do policial recaiu sobre a figura no chão, rodeada de vômito e frascos.
"Ele se suicidou, senhor. Não pude fazer nada. Pode verificar - não há digitais minhas no frasco"
"Mesmo assim, pedimos que venha conosco. Vamos pegar suas digitais, amostras das substâncias... conhece seu direito de ficar calada, tudo o que disser pode e será usado contra você."
"Mas sou inocente até que se prove o contrário"
"Sim"
"Muito bem, então. Prenda-me.". Apresentou os pulsos. O policial, confuso com sua calma, algemou-a.
"Ramos, chame a perícia. Fique aqui. Vou levá-la à delegacia, lá vamos ver o que podemos fazer". Vitória olhou o corpo pela última vez. Quem iria ao funeral? Não tinha família. Amigos? Dificilmente. Ele morreria sozinho. Por mais sádico que isso parecesse, Vitória contentou-se com esse pensamento enquanto era empurrada para dentro da viatura.

(continua)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

cry me a river

(pra ser lido ao som desta música)

Now you say you're lonely; you cry the whole night through

Vitória olhava para aquele corpo inerte do outro lado do cômodo. Não sentia remorso, muito menos culpa. Sentia pena. Pena dele, do que ele tinha se tornado, e pena dela, e do que ela tinha permitido que fizessem com ela. Bufou. Abriu a porta de correr que dava para a varanda; o quarto começava a ficar sufocante. Pegou o maço de cigarros e o celular e foi se sentar na varanda. Colocou uma seleção de jazz para tocar e, contrariando as expectativas do leitor, atirou o maço pela tela de proteção da varanda. Observou enquanto ele caía por 15 andares. Ela já não mais precisaria dele - não havia mais ansiedade para ser tratada com vícios.

Well, you can cry me a river, cry me a river... I cried a river over you

Curioso. Poucos  minutos antes, ele chorava e repetia as mesmas palavras que disse quando se conheceram.
"Eu vou fazer isso, sabe. Ninguém pode me impedir. Nem você."
Na situação do primeiro encontro, Vitória trabalhava como paramédica e impedira que ele cometesse suicídio, por overdose de antidepressivos, após um surto psicótico. Ou seja, tendo como base a forma como se conheceram, era de se esperar que Vitória tivesse entendido que o indivíduo era absolutamente instável e maníaco, mas não, leitor. Ele apareceu no hospital em que ela trabalhava, duas semanas depois, com flores em uma mão e um documento atestando sua plena capacidade mental em outra. Agradeceu à moça que salvou sua vida por tê-lo feito e a convidou para jantar. Certo, ela disse, que vamos comer? Qualquer coisa de sua preferência que não leve antidepressivos na receita, ele respondeu, e assim começou a (in?)felizmente curta história conturbada que acabou com um corpo inerte num apartamento de cobertura do Rio de Janeiro.
De mentalmente capaz ele não tinha nem nunca teve nada. Sempre surtando, sempre em crise, sempre recusando ajuda, sempre jogando a responsabilidade pelas lágrimas de Vitória sobre sua condição "complicada". E ela tentava entender, tentava acreditar. Ela era formada em medicina e lembrava-se de ter visitado alguns hospitais psiquiátricos, sabia como era triste a situação de pacientes "complicados". Por isso tentava ser complacente. Por isso derramou rios de lágrimas por ele.

Now you say you're sorry for bein' so untrue... well, you can cry me a river, cry me a river... I cried a river over you

Entre vícios e traições, mentiras e desculpas, rosas e chocolates, a relação dos dois se desenvolvia. Nos primeiros meses, ela foi compreensiva. Depois ficou apreensiva. Ele começou a ficar violento. Vitória temia que, se ela pusesse um fim à relação deles, ele iria atrás dela atrás de explicações e voltaria pra casa com um mandado de prisão por homicídio. Depois tornou-se apática. Tinha seus próprios problemas no trabalho e no mestrado e cansou-se de ser a babá de alguém. E foi então que ele, de violento, regrediu; começou a ficar dependente demais. Vivia doente, para que ela dele cuidasse - Vitória não sabe dizer quando a linha entre fingimento e sintomas reais, causados por ele mesmo, foi cruzada. No fundo, ela não se importava. Talvez esse fosse o jeito doido dele de pedir desculpas pelo comportamento antigo, talvez fosse sua forma de mostrar que queria atenção. Tudo de forma bem doentia. Mas nunca verbalizou um sentimento sequer. Na verdade, a primeira e penúltima vez que Vitória o viu chorar foi quando ele estava prestes a se matar.
E a última foi quando ele de fato o fez.
Céus, qual era o motivo de tantas buzinas às três horas da manhã?!

You drove me (nearly drove me) out of my head, while you never shed a tear

(continua)