quinta-feira, 24 de outubro de 2013

o pequeno urso

Era uma vez um pequeno urso.

Nossa história começa com a cena de nosso pequeno urso saindo do bosque chamado Solidão.

Ele não sabia muito bem como havia parado naquele bosque - na verdade, desde que se entendia por urso ele havia morado lá. Talvez tivesse sido concebido lá. Não sabia ao certo. Mas agora não fazia diferença, porque ele decidiu sair de lá.
Como o nome pressupõe, era um lugar muito difícil de se sair. Muito escuro e confuso. Mas um dia ele olhou pra cima e viu o Sol. Depois viu a Lua. E passou a se guiar por essa luz. E conseguiu sair.

Andou por muitos lugares. Conheceu muitos campos a céu aberto, conheceu bosques menores, andou por muitos lugares bonitos, - mas agora guiado pelo seu instinto de aventura, não mais pela luz.

Um dia se cansou e parou num bosque qualquer, sem pretensão de ficar. Passou o dia, passou a noite. Acabou gostando do lugar. Era muito bonito - passava uma sensação de tranquilidade, havia comida, água em abundância e fazia tanto sol! Era aconchegante. Alguma coisa ali parecia certa. Enfim, havia encontrado um lugar em que se fixar. Enfim! Um lugar pra chamar de "casa".

Então, assim como fez para sair do bosque Solidão, o pequeno urso olhou pra cima. E lá estava o sol. Porém, agora ele não estava lá para guiá-lo para fora do lugar - ele estava ali mostrando que aquele era o lugar certo. E como aquele sol o fazia se sentir bem! Aquele calor, como ele nunca havia sentido antes - pois o bosque Solidão era frio, úmido, desconfortável. O sol reconfortava. O sol abraçava. Era tudo de que ele precisava - de um lugar bonito, que o pudesse sustentar. E ainda tinha esse sol!

Tudo estava indo bem. Até que, um dia, choveu.
O sol continuava lá, mas a chuva não parava. Nunca. Então por mais que o sol trouxesse calor e serenidade para o pequeno urso, a chuva o fazia sentir frio. O sol esquentava, mas não o suficiente para que a chuva não pudesse ser sentida; a chuva era gelada, mas não o suficiente para que o fizesse querer sair do sol. Ele não sabia o que fazer. Não queria se esconder do sol; era a primeira vez em tanto tempo - ou talvez fosse a primeira vez absoluta - que conseguia sentir esse calor de forma tão intensa. Mas a chuva... a chuva estava sempre lá. Às vezes mais fina; outras vezes, torrencial - mas ela marcava presença e não se deixava esquecer.

O pequeno urso sentia sua cabeça doer. Ele nunca antes tivera que tomar uma decisão assim.

Tentou um tempo ficar exposto ao sol - e à chuva. Mas era difícil... ele precisava de mais calor.
Tentou um tempo ficar dentro da água, para que a chuva não fizesse tanta diferença. Mas era difícil... fazia muito frio.
Tentou um tempo entrar no bosque e ficar protegido. Mas ele então sentia só a chuva, e não o sol. E ele definitivamente precisava de Sol.

Na busca por alternativas, o pequeno urso foi andando pelo bosque. Viu árvores com ninhos de pássaros, viu tocas embaixo da terra, viu cavernas. Mas nada parecia satisfazê-lo. Até que viu uma choupana abandonada.
Ele entrou lá. Lá dentro não entrava muita luz - mas não chovia. Lá dentro não era muito quente - mas também não era frio. Mas havia um pequeno detalhe, que fez o pequeno urso lá permanecer: havia uma janela. E essa janela permitia que nosso urso observasse lá fora. Ele podia ver a chuva caindo, ele podia ver o sol brilhando e continuava assim, indiretamente, sentindo seus efeitos. Mas com alguma proteção.

E, no final das contas, talvez isso realmente fosse melhor - acompanhar, de longe. Sentir, de longe. Pelo menos até que a chuva passasse. Afinal, o sol sempre estaria ali.

domingo, 13 de outubro de 2013

...blindness

Love is blindness.

Foi a primeira coisa que veio à mente dela quando abriu a janela do vigésimo quarto andar do hotel. Inspirou o ar gelado da cidade de concreto que, às onze da noite, começava a sentir despertar sua vida alternativa. Engraçado algo despertar na cidade enquanto algo morria dentro dela mesma.
Olhou ao redor, para dentro dos outros prédios. Cenas da vida cotidiana: um casal assistindo ao jornal, um jovem debruçado sobre uma mesa cheia de livros, uma criança sendo posta para dormir por um adulto, uma mulher passando roupa, outro casal brigando aos gritos, um rapaz debruçado na janela também contemplando a cidade. Uma rua os distanciava.
Quando seus olhares se encontraram, sentiu uma faísca de compreensão. Algo como "é, cara... é isso aí", aquela sensação de estar preso, tácito, nas alturas, quando o mundo está lá embaixo, em ebulição.
Mas, afinal, a vida não se resume a isso? A desencontros?

- É lindo, não acha?
- Acho.
Sorriem um para o outro, achando bonito tanto a cena quanto a situação de plena sintonia.
- Eu poderia passar minha vida aqui com você, Marina.


love is clockworks and cold steel
fingers too numb to feel
squeeze the handle, blow out the candle
...blindness.

Deu para si um sorriso tragicômico. Ela já estava velha demais para se comportar feito adolescente. Pessoas vêm e vão, repete para si. Mas o aprendizado fica.
Que aprendizado? Uma vida de cicatrizes é aprendizado? Se ela tivesse aprendido alguma coisa, qualquer coisa, com suas experiências, provavelmente já teria tomado um coquetel de cicuta, garçom, e não pare de servir.
Mas acontece que existe um pequeno vaga-lume dentro dela que continua piscando. Um vaga-lume que faz o favor de acender toda vez que acontece alguma coisa ruim. Um desgraçado de um vaga-lume que é a única coisa que dá pra ser vista no escuro. E ele se chama esperança.

- O que você tem?
- Não sei, Marina.
- Não vai falar comigo?
- Não.

a little death without mourning
no call and no warning
a dangerous idea
that almost makes sense

O rapaz do prédio agora bebia algo que parecia ser cerveja. Quão patético, não? Beber cerveja, fazendo contato visual com uma estranha, quase meia-noite, numa quarta-feira.
Ela pegou uma latinha e fez um brinde mentalmente.
Engraçado como ela sentia que aquele era um momento só deles. Podia haver uma cidade inteira em volta, mas, naquele minuto, só existiam eles, os dois blocos de concreto e a rua separando-os.
E as cervejas.
Eram companheiros de solidão. Porque a vida se resume a isso: desencontros.

- Como assim, cara? Uma semana atrás você dizia que me amava, agora isso?
- Não é assim, Marina. Você que veio com essa história de morar junto, e...
- Como, não é assim? O que você esperava que eu pensasse? Sentisse?
- Você viajou. Sério.

love is drowning in a deep well
all the secrets, and nobody else to tell
take the money, why don't you, honey
...blindness

Ele agora atendia um celular. Saiu da janela. A luz se apagou.
É, Marina, agora só sobrou você. Até o rapaz arrumou algo a fazer.
Que raio de sintonia era essa? Mas que mania de achar que você tem sintonia com todo mundo! Agora o pretendido companheiro de solidão mostrou que companhia tem limite. Porque afinal a vida se resumiu a isso: desencontros e abandonos.
Por que mesmo você foi até a janela, Marina?
Ah, é.

Um vôo de alguns segundos. Solitário. Uma vida de desencontros terminou num encontro com o asfalto duro da avenida Paulista.


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

sintonia

Pra ser lido ao som desta música.

Felicidade é conseguir esquecer e parar de pensar. Pois nem se ele quisesse ele conseguiria pensar em mais alguma coisa, naquele instante.
Não importava os compromissos que ele tinha dali duas horas, ou o deslumbrante palestrante para quem ele devia telefonar dali três horas, ou o sapato apertado. Só importava que sua cabeça estava apoiada nas pernas dela, e que as mãos dela eram macias, e que a irritação que ela demonstrava quando o vento batia em seu cabelo, desarrumando-o, deixava-a ainda mais bonita.
Não importava nem o medo que ele sentia. O medo que aquela sensação de não pertencer a si mesmo causava. O medo de decepcionar.
As unhas dela eram tão bonitas. E aquele vestido de festa preto, discreto, dava-lhe um ar de elegância que às vezes se confundia com a confusão e a ingenuidade em seus olhos. O sorriso no canto da boca a entregava.
Sentir o carinho. Sentir aquele perfume que o fazia ir até a Índia e voltar. Ela estava com os olhos semicerrados e encarava o horizonte. E tão linda.
- Que cara é essa?
- Nada, não.
Tudo cabe nesse nada. Ele sabe disso. Ela não precisava ficar explicando. Bastava o momento.
Carinho no rosto. Um beijo na testa.

* * *

Felicidade é aquele intervalo de tempo entre preocupações. Ela constatou isso, naquele instante.
Naquele instante em que captou com os olhos, com a consciência, com o âmago da sua própria alma a beleza do momento; porque tudo, ali, era bonito. O lugar - ela já fora lá muitas vezes, mas havia algo de diferente -, o vento que batia no seu cabelo e ficava tirando sua franja do lugar, o cheiro de grama recém-molhada de orvalho e recém-cortada, a cor de um céu que acabava de acordar.
E ele, ali, deitado em seu colo.
Os cabelos dele, ali, por entre os dedos dela. O cheiro dele de roupa limpa e de perfume. O sorriso dele que tentava se passar por maroto, mas que ela sabia que era tímido. O coração dele, batendo forte por baixo da camisa social.
Passar as mãos no cabelo dele. Sentir o vento.
Sentir o calor do sol - ele está nascendo.
- Que cara é essa?
Ela sorriu. Como explicar que seu coração já não cabia mais no seu peito? Que agora ela encontrara um caminho que a levaria pra se descobrir - pois ela sabia que, no fundo, somos o intervalo entre as decisões que fazemos e suas consequências? Que ele tinha um sorriso bonito e gostava de seu hálito de hortelã?
- Nada, não.
Carinho no rosto. Um beijo na testa.

domingo, 25 de agosto de 2013

uma flor nasceu na rua.

Eu sempre tive esse jeito meio difícil.
Aliás, sabe, pensando bem, talvez eu tenha construído esse jeito difícil. Sim, isso faz mais sentido. Quem tem o coração muito grande precisa de uma caixa torácica ainda maior pra protegê-lo. Então acho que foi mais ou menos isso que aconteceu comigo.
Eu não preciso de muito mais do que uma lua, um conhaque, pra ficar comovida como o diabo.
E justamente por isso é que eu sempre duvidei bastante de todo e qualquer sentimento positivo que floresce dentro de mim por alguém, seja esse sentimento uma simples empatia, amizade, admiração, paixão - e não digo amor porque, bem, quem sou eu pra saber o que é o amor, não?
Obviamente que, agora que eu introduzi o texto, apresentei uma ou outra informação relevante e, logo em seguida, o problema, o leitor atento já espera que, agora, eu insira uma ressalva.
E o leitor atento acertou.
Num dia comum - nem muito ensolarado, nem feliz, nem triste; só mais um dia comum de inverno, com um céu muito azul de brigadeiro -, nesses nos quais você não tem expectativa nenhuma e vai vivendo meio que no piloto automático; nesse dia, eis que uma flor nasceu na rua (!).
É claro que eu não soube o que fazer. Na verdade, não sei até hoje. O asfalto que me recobria não era um asfalto de angústia ou de tristeza; mas de pura apatia, falta de expectativas e despreparo. Então digamos que, quando vi aquela flor, imagine a minha surpresa ao constatar que, por baixo de todo aquele asfalto, de fato havia alguma coisa viva!
E o mais curioso - ou, talvez, nem tanto - foi a forma como eu percebi isso. Quero dizer, como você sabe o que sente? Como percebe? Não é como se fosse possível imprimir um relatório de atividades e do status dos seus cérebro e coração (antes fosse). Então, às vezes, o que acontece é uma epifania (elas são impressionantemente frequentes, no meu caso).
A questão é que: durante um milésimo de piscar de olhos, a rotação, a translação, o ticar dos ponteiros do relógio, o bater de asas do bem-te-vi, a fotossíntese da grama, o ler do vestibulando, o bocejar do universitário, o passeio calmo das nuvens, tudo - tudo - parou. Parou, nem por razão ou coisa outra qualquer. E nesse parar do tempo, desencadeado por sabe-se lá o quê, eu só tinha em mente o quão fantástica a situação era, o quão sensacional alguém pode ser; adquiri consciência da minha pequenez e insignificância diante de alguém, pra, em seguida, mudar de ideia e pensar que não, que talvez eu tenha algum potencial, já que, convenhamos, tal ser tão fantástico dirige sua palavra a mim; pra, em seguida, fazer a anotação mental de tentar ser meu melhor possível de agora em diante; pra, em seguida, frustrar-me por antecipação do medo de isso não acontecer; pra, em seguida, balançar a cabeça pra afastar todos esses pensamentos porque, naquele momento, só o que importa é o próprio momento.
O leitor deve estar pensando que, se for assim, ele se apaixona todos os dias. Bom... acontece.
Tudo isso pra dizer que: talvez eu não saiba o que é sentir; talvez eu saiba. Mas, ultimamente, eu tenho estado com a sensação de que venho guardando o amor que nunca soube dar, o amor que tive e vi sem me deixar sentir, sem conseguir provar, sem entregar e repartir.
E eu ainda não sei como fazer pra ter um jeito meu de mostrar.
Engraçado é pensar no quanto eu pensei nisso. É que eu gosto de escrever pra colocar as ideias em ordem.

E não tem como não pensar em nada disso depois de passar dias seguidos ouvindo isto.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Atelofobia

- Muito bem, senhora Ana Regina... agora, última proposta: defina-se em uma palavra.

Nasceu. Foi direto para a incubadora. Passou um tempo, a mãe questionou.
- Não, não está forte o suficiente.
Cresceu. Estava prestes a ser matriculada na escola.
- Não, não temos vagas o suficiente.
Queria brincar.
- Não, você não é normal o suficiente.
Queria andar na montanha-russa.
- Não, você não tem altura o suficiente.
Queria estudar. Queria ler. Queria conhecer.
- Não, você não tem tempo o suficiente.
Queria tentar ser modelo.
- Não, você não tem altura o suficiente.
Queria ser útil.
- Não, você não tem idade o suficiente.
Tentou fazer aula de dança.
- Não, você não tem leveza o suficiente.
Tentou fazer, então, algum esporte.
- Não, você não tem rapidez o suficiente.
Ioga.
- Não, você não tem tranquilidade o suficiente.
Faculdade. Tentou um estágio.
- Não, suas notas não são altas o suficiente.
Tentou, então, reforço.
- Não, suas notas não são baixas o suficiente.
Quis doar sangue.
- Não, seu nível de ferro não é alto o suficiente.
Terapia.
- Você não tem problemas o suficiente.
Paquerar?
- Não gosto de você o suficiente.
Só ficar?
- Você não é mulher o suficiente.
Namorar?
- Você não é o suficiente.
Virar freira.
- Você não tem fé o suficiente.
Ficar pra titia. Literalmente.
- Não, já temos babás o suficiente.
Me escreve uma música?
- Você não me inspira o suficiente.
Queria comprar sorvete.
Não tinha dinheiro o suficiente.

Foi a gota d'água.

Tentou se matar.
- Por sorte, não inalou o monóxido de carbono por tempo suficiente.

Quando saiu do hospital, decidiu seguir vida nova e construir uma carreira.

- Ah, senhor, eu diria que sou... meticulosa.

Conseguiu emprego como crítica literária. Tocava o terror entre os escritores. Sua marca registrada era finalizar a resenha com uma palavra: "insuficiente".

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Tristeza - Aubrey de Vere

Quando moço, eu disse à Tristeza:
"Vem, que brinco contigo."

Aconteceu, certa vez, quando eu era pequena, de estar sentada sozinha no corredor da escola. Os colegas não me chamaram pra brincar; aqueles aos quais eu pedi para me deixar entrar na brincadeira, recusaram. Então fiquei sentada, ali, olhando para meus sapatos novos e perguntando o que eu devia fazer.
- Eu posso te fazer companhia.
Era um mamiferozinho muito pequeno; parecia um rato, um camundongo, mais precisamente; tinha grandes olhos tristes e azuis.
- E quem é você?
- Sou a Tristeza. Sou o que você está sentindo agora. E vou te fazer companhia, desde que você me alimente.
- E do que você se alimenta?
- ...digamos que você não se esquecer de mim é o suficiente.
Eu pisquei os olhos e fiquei encarando aquele ser que agora fazia parte de mim, de minha vida. Eu não sabia muito bem o que dizer; aquele ser era algo novo, algo com o qual eu não sabia lidar - o que me colocava em sérias desvantagens.
A partir desse dia passamos a nos ver com alguma regularidade. Às vezes eu a via todos os dias; outras vezes, passava semanas sem vê-la. Mas eu sabia, de alguma forma, que ela sempre voltaria. Afinal, ela me disse que me faria companhia - desde que eu a alimentasse.

Agora está perto de mim todo o dia
E de noite retorna e diz:
"Volto amanhã com certeza,
Volto e fico contigo."

Conforme fui ficando mais velha, a Tristeza também foi crescendo, envelhecendo, amadurecendo. Agora seus grandes olhos já não eram mais tristes e azuis; eram melancólicos e negros. Olhar dentro deles era como encarar o próprio Nada. Ficava cada vez mais difícil pedir a ela que fosse embora.
- Tristeza, não quero mais que você fique comigo. Você dá muito trabalho. Eu não tenho tempo pra mim...
- Não! Não vou. Porque, se eu for, você vai ficar perdida e vai se sentir vazia. Não vai saber o que fazer. Você consegue imaginar? Sobre o que pensaria? Como passaria seu tempo? Sobre o que escreveria? Você seria mais uma menina patética e feliz. Acredite, é melhor que eu fique.
- Mas, Tristeza... você me consome.
- Eu sei o que é melhor pra você.
E, conforme o tempo foi passando, foi ficando mais difícil desvencilhar-me dela porque eu não sabia mais tomar minhas decisões sozinha. Era sempre a Tristeza quem falava, quem se posicionava, quem pensava. Eu sempre a consultava antes de tomar uma atitude ou de falar com alguém. E, quando eu a questionava, sua resposta era sempre a mesma:
- Eu sei o que é melhor pra você. Você não sabe fazer isso sozinha.
E eu, é claro, concordava.

Andamos juntos pelo bosque,
Seus passos mansos murmurando ao lado.

Chegamos ao ponto de eu simplesmente assistir enquanto a Tristeza vivia minha vida em meu lugar. Ela dominava a esfera das minhas relações sociais, dominava como eu lidaria com minhas atividades pessoais, dominava do que eu gostava, que filme eu assistiria, a que música escutaria, quais palavras usaria, o que eu comeria. Chegamos ao ponto de eu ser uma espectadora da minha vida. Chegamos ao ponto de eu simplesmente esquecer qual atitude eu tomaria se estivesse no lugar da Tristeza.
Afinal, ela conseguira. Ela me anulara. Agora eu só era se juntamente à Tristeza. Eu não existia mais.
Quando eu olhava para o espelho, para meus próprios olhos, eu via a ausência. Não o Nada, como nos olhos da Tristeza, mas a ausência. Eu simplesmente não estava mais lá.

E quanto mais eu tentava resistir, mais ela me enfraquecia, e mais eu precisava dela. Assim, entrei num ciclo infinito de resistência e enfraquecimento. Tristeza, engenhosa como ela só, criou uma forma de autossuficiência: ela mesma criou um ambiente que, despertando em mim a vontade de dela me afastar, só dela me aproximava mais.
Só me fazia esquecer cada vez mais de quem eu realmente era - se é que eu um dia sequer fui.


Para amparar um ser em desestima,
Ergueu um invernoso abrigo,
E a noite toda, quando chove,
Escuto os leves respiros ao lado.

("Tristeza", Aubrey de Vere)

sexta-feira, 12 de abril de 2013

lasanha e vinho

- Carlos.
- Fala.
- O que eu tô fazendo?
- Não sei, mas eu tô é tentando dormir.

- Carlos.
- Que foi.
- Você tá dormindo?
- Tô, não tá vendo?
- Não tá não.
- Tô sim.

- Carlos, o que eu tô fazendo?
- De novo isso? Não sei, criatura. Me impedindo de dormir?
- Não, Carlos. O que eu tô fazendo da minha vida?
- Como assim, da sua vida, Clarice? Que papinho, hein.
- Ai, não sei. É que essa noite eu tô com isso, sabe.
- Com isso o quê, mulher.
- Nossa, quanta indisposição...
- São duas horas, Clarice. E eu acordo às sete.

- ô Carlos...
- Tá bom, anda, fala.
- Bom, começou quando eu cheguei em casa e esquentei a lasanha pra gente.
- Hã.
- Aí eu tirei a lasanha do micro-ondas, coloquei em cima da mesa...
- ...eu abri o vinho...
- Sim, você abriu o vinho... liguei a televisão, tava passando o jornal...
- ...ah sim, o jornal...
- E nós comemos, assistimos, conversei com a Paulinha pelo telefone, tomei banho e vim deitar.
- E onde é que tá o drama, Clarice?
- Como, onde? Isso tudo é um drama! Quero dizer, olha só a que se resume nossa noite: a vinho, lasanha e televisão.
- Qual é o problema?! Depois de trabalhar o dia inteiro, você queria fazer o quê?
- Ai, não sei, Carlos. É que acho minha vida meio vazia, só isso.
- Você tá pensando nisso desde a hora que se deitou?
- Sim. É que essa lasanha, esse vinho...
- Qual o problema da lasanha e do vinho? Por que você encanou com eles? Lembrando que quem comprou a lasanha foi você.
- Problema nenhum, Carlos, você não tá entendendo. Mas é que a lasanha...
- Coitada da lasanha, Clarice. Ela só queria te alimentar. Só isso. Você que tá complicando.
- ...a lasanha, sabe, você só coloca no micro-ondas e ela tá pronta. Suculenta. Não tão boa como algo que demora a ser preparado, caseiro, em que você empenha seu tempo e amor... mas ela também é boa. E eu me acostumei com isso.
- Com a lasanha?
- Com a ideia de coisas prontas, Carlos! Com a ideia de não empenhar meu tempo em nada.
- E a lasanha te levou a pensar isso?
- Não, tem o vinho, também...
- O que tem o vinho? É do Porto, seu preferido... enjoativamente doce...
- Pois é, Carlos... pois é. Você toma um gole aqui, outro ali, quando te convém, desse doce fantástico... mas tudo o que resta, no final, é uma garrafa vazia.
- E gastrite.
- E gastrite. Então, me diz, é essa a vida que você quer viver? Uma vida de lasanhas e vinhos?
- No sentido figurado ou no sentido literal?
- Claro que no sentido figurado, né, Carlos! Não tô pedindo pra você renunciar ao seu gosto por lasanha.
- Aquela lasanha que você comprou tava fantástica. Também não quero renunciar ao meu gosto por vinho.
- E por vinho. Eu também adoro.
- Clarice, você não é um jantar composto por uma garrafa de vinho e uma lasanha.
- Não sou?
- Não é. Você não se esvazia quando as pessoas se levantam da mesa e lavam seus pratos.
- Ai, essa foi a coisa mais linda que você me disse nessa semana.
- Sou um poeta.
- É nada.
- Claro que sou! Olha meu nome.
- Nesse caso, meu nome também me qualifica.
- Que crise, hein, dona.
- É que essa lasanha, esse vinho, botam a gente comovido como o diabo.
- Essa frase é minha.
- É nada. Boa noite.
- Boa noite.

terça-feira, 2 de abril de 2013

i'm a fool to want you

Hermínia chegou à faculdade no horário de sempre. Estacionou seu carro popular prata, acenou para um ou dois colegas e se pôs em direção ao prédio onde estudava. Como um cérebro de qualquer estudante, o dela já estava sobrecarregado de lembretes, conceitos, tarefas e datas. Tudo isso antes das oito.
Deixando-se guiar pelo piloto automático - que determinou que suas pernas a levariam até a biblioteca -, ela mal percebia as pessoas que passavam ao seu lado (também era função do piloto automático dar um aceno de cabeça para os amigos que cruzavam seu caminho). Entre armários e estantes e catracas e livros, Hermínia foi se sentar no seu já marcado território da biblioteca para estudar.
Mal ela tinha aberto o primeiro livro, ele apareceu diante dela.
Ele apareceu e aquela música da Billie Holiday começou a tocar na cabeça dela.
I'm a fool to want you, to want a love that can't be true.
Ela sorriu. Ele parecia sorrir de volta. Sempre tão arisco, tão fugidio, como água entre os dedos. Sempre tão perto, mas simultaneamente tão distante. Muito cruel, ele. Às vezes se mostrava muito próximo, tão possível, tão familiar; e outras vezes se comportava como um estranho. Ela não entendia. Era uma relação muito complicada. Mas, por algum motivo, ela não conseguia se desvencilhar daquilo tudo; por alguma razão, isso só o tornava mais atraente, interessante, complexo...

Não que fosse fácil sentir-se constantemente incapaz de conquistá-lo. Ela via a relação dele com as outras pessoas - parecia tão fácil e saudável! Frequentemente parecia que as outras faziam muito menos esforço do que ela para conseguirem certa proximidade com ele. Por que ela não conseguia? O que estava fazendo de errado? Sua abordagem estava falha? Será que ela precisava de ajuda?

* * *

Ele estava em sua vida havia um tempo. Alguns anos, na verdade. Aliás, pra falar a verdade verdadeira, ele sempre esteve em sua vida, mas somente de alguns anos pra cá é que essa relação tomou forma (mesmo que uma forma confusa, indefinida; mas forma). E nunca ele pareceu tão inalcançável quanto agora.
Talvez porque ela o tenha conhecido melhor, compreendido o que era necessário para alcançá-lo em sua integridade - e uma parte sua insistia em negar a tão clara e notória possibilidade de que ele talvez nunca pudesse ser totalmente conquistado. Muito cheio de detalhes e manhas, ele. Sempre que ela achava que estava chegando perto, ele colocava outra barreira, outro empecilho, outra questão. E ela tinha de se afastar.

* * *

Time and time again I said I'd leave you; time and time again I went away; but then would come the time when I would need you, and once again these words I had to say: take me back, I love you. I need you.
Saindo da biblioteca, Hermínia decidiu parar na cafeteria para se dar ao luxo de tomar um capuccino (bastava de chá-de-café). Mas mesmo lá, fora de seu habitat (que, naturalmente, era a biblioteca ou a sala de aula), ele a perseguia. Talvez só para ter o prazer de jogar em sua cara que ela nunca o teria. Talvez só para marcar presença em seu pensamento. O fato é que ele nunca a abandonava, de uma forma ou de outra. "Será que algum dia ele vai me deixar em paz?", ela pensava. "Será que eu sempre vou precisar tanto assim dele?"... mas ela sabia a resposta. Sim, ela sempre precisaria dele, porque ela escolheu precisar. O caminho que ela decidiu traçar está intrinsecamente ligado a ele. E sempre vai estar. Porque ela precisa dele, e, de certa forma, ele também precisa dela, pois, sem admiradores, ele seria um completo vazio.

"Ele."

"Esse amante tão insensato, que me tira do sério, que me tira noites de sono, que me deixa cada vez mais apaixonada por ele, que me deixa cada vez mais frustrada por não tê-lo só pra mim, por ter de dividi-lo, por exigir de mim constante mudança e aprimoramento..."

Ele. O conhecimento.

terça-feira, 26 de março de 2013

obstáculos e pontes


Interessante é o fato de que ao mesmo tempo que a linguagem pode ser esclarecedora (como quando você descobre uma palavra que sintetiza um sentimento inteiro que você não conseguia explicar; "nossa!, é isso mesmo!") ela pode ser tão absurdamente limitante (porque esse mesmo sentimento pode ter várias facetas e explicações, mas assim que você o define, ele fica preso aos ditames e à semântica da palavra em questão). Pode-se, nesse contexto de abrangência e imprecisão, inserir as palavras polissêmicas, que simultaneamente abrangem muitos sentidos (expressam muitas ideias) e exatamente por isso amarram todos esses sentidos a uma coisa só. Estranho isso, não?, o fato de algo versátil ser aprisionador. A palavra angústia, na minha opinião, exemplifica muito bem isso. Existem muitas "classes" de angústia, assim como muitas causas, mas a palavra é tão vaga que tudo passa a ser "angústia" e, por se definir como tal, o sentimento em si torna-se vago, impreciso.
E se tem uma coisa que eu odeio é imprecisão e indefinição.
Então surge a pergunta que vem me martelando desde que li 1984 simultaneamente a Wittgenstein ("Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo"): é possível verbalizar o pensamento? Todo e qualquer pensamento?

A primeira resposta que me veio à cabeça foi "sim, pois a linguagem é criação da racionalidade, logo do pensamento, logo, deve nela haver um correspondente a tudo que é fruto do pensamento".
Mas nosso próprio pensamento, raciocínio é estruturado por palavras. Então, no caso, seria impossível pensar algo que não é (ou não foi ainda) exprimido pela linguagem. Seria o pensamento realmente limitado por palavras, por serem concretas, definidas, como uma fõrma de bolo?
Ao mesmo tempo, o pensamento é ilimitado. É totalmente possível se pensar em fenômenos que vão além do que se vive no aqui, no agora, no espaço. Na verdade, questionar-se sobre fenômenos de quaisquer natureza é o que nos caracteriza, não? Isso inclui morte, sentimentos, princípios - tudo o que não é concreto e que não precisa ser necessariamente vivenciado para que seja alcançado pelo pensamento criativo, indagativo e imaginativo do ser humano. Quero dizer, é claro que não se precisa vivenciar a morte para se pensar sobre ela, certo?

Mas isso não realmente importa, pra mim. Se a linguagem exprime ou não o que eu quero dizer não faz tanta diferença. Faz diferença na medida em que isso afeta as relações intersubjetivas. E elas são imensamente afetadas. A linguagem, ao mesmo tempo que ponte, é um grande muro que separa o meu mundo do mundo do outro. Ou mesmo uma miragem, uma simples ilusão, ao passo que pode parecer haver uma comunhão de significado, mas, devido ao caráter polissêmico das palavras (ou ao fato de que a carga semântica de cada palavra, porque é fruto das experiências de cada pessoa com a própria palavra e seu uso, varia de pessoa para pessoa), eu transmito a, a pessoa ouve b e o que eu realmente queria dizer é c. Então o que garante que somos compreendidos? Partindo disso, o que garante a legitimidade das relações, de quaisquer tipos?

Não sei. Se questionarmos demais, cairemos num vazio de sentido absoluto.

O que importa é que, mesmo com todas as barreiras, é de nossa natureza tentar ultrapassá-las e construir pontes entre nossos mundos individuais. O que importa é que, com algum esforço, é possível olhar para o outro e dizer "eu entendo o que você quer dizer" - mesmo que não entenda; o que vale é a intenção.
(Pra não estragar o tom do texto, não vou entrar no fato de que o ser humano pode ser muito beócio também quando quer, ao se empenhar em não entender o outro, seu ponto de vista, sua história, seus motivos. O que é, de fato, muito mais frequente do que a tentativa de compreensão, mas eu tenho tentado ver as coisas não de um ponto de vista diferente, mas com ênfase diferente.
Porque não dá pra olhar pro lado luminoso da coisa se você não virar a cabeça, certo?)

sexta-feira, 15 de março de 2013

sobre nada, talvez

Eu preciso muito resolver esse meu problema de só conseguir escrever quando não tenho mais nada pra fazer ou quando estou muito triste/angustiada/ansiosa ou quando tenho ataques de inspiração.
Às vezes acho que meus textos são todos iguais e que qualquer coisa que eu escrever, de narração, vai ser uma releitura de algo que eu já escrevi. Eu sei que a literatura é isso, não é?, quero dizer, releituras sob diferentes pontos de vistas dos mesmos temas: amor, raiva, angústia, traição, vingança, decepção. Mas eu queria saber escrever sobre coisas diferentes.
E eu acho que eu não vou ter mais tempo pra escrever, de fato. Eu tinha me comprometido comigo mesma de escrever uma vez por semana, mas acho que não vai dar. Como eu já devo ter escrito aqui, fui aprovada em direito na FDRP e o curso é integral. Fico na faculdade literalmente o dia inteiro, todos os dias, com exceção de sexta, e não tenho tempo pra fazer mais nada além de ler. A estudar o dia inteiro eu estou acostumada, mas a ter que ler tanto todos os dias, não.
Por mais estimulante que a faculdade seja, eu não acho que tenho conteúdo o suficiente ainda para escrever um texto com base jurídica ou mesmo filosófica, epistemológica.
E eu sinto falta de escrever, de ter o que escrever. É que eu me condicionei a fazê-lo para não enlouquecer, como disse já várias vezes. Escrever é e sempre foi minha terapia. O teclado e a página de postagens do blogger eram meus terapeutas e me faziam ingressar em viagens introspectivas que eu não conseguiria fazer sozinha. Mas é claro que você só questiona suas existência e condição quando você está triste, melancólico, miserável, basicamente. E eu agora estou feliz. Estou gostando muito mais do curso do que eu achei que fosse gostar. Tenho conhecido pessoas realmente fantásticas. Estou estudando algo de que gosto. Tenho estímulos intelectuais todos os dias. Minha vida virou de cabeça pra baixo - eu precisava muito disso, e estou adorando essa montanha-russa de sentimentos, pensamentos e planos.
É claro que estou confusa. Muito confusa. Mesmo estando há apenas duas semanas na faculdade, senti que já mudei. Quando olho para a Bruna de três meses atrás, de seis meses atrás, sinto que algo se perdeu e outro algo entrou no lugar. Não me sinto mais a mesma. Acho que amadureci. Tenho tido necessidades diferentes no âmbito de relacionamentos (tenho buscado outras coisas nas pessoas que conheço), tenho tido necessidade de ser vista e de ser tratada de forma diferente, tenho tido necessidade de consumar essa mudança. E não que seja difícil, é extremamente prazeroso, mas toda mudança é complexa.
É engraçado.
Sempre gostei de escrever (e sempre escrevi) muito sobre perdas. Mas eu não sei o que falar sobre ganhos. Não sei expressar. Falo tão bem de miséria, tão fluentemente, mas ainda não domino a linguagem da felicidade. Literalmente, mesmo. Acho que meu conhecimento de adjetivos ligados à tristeza vai muito além das palavras que eu conheço pra definir felicidade. Se bem que até que faz sentido. Quero dizer, se se está feliz, se está feliz e pronto, ponto final. Felicidade não pede mudança. Mas a tristeza pede definição, demarcação de território, para se saber exatamente o que precisa ser mudado. Ela é tão mais interessante, não? Tão mais rica e é um combustível tão mais eficiente.
Mas enfim. De vez em quando recebo comentários pedindo que eu escreva. Comentem com dicas de temas ou de assuntos sobre os quais vocês gostariam de ler e eu sobre ele escreverei. Quem sabe assim eu não me distraio um pouco da bolha acadêmica em que estou entrando. Certo? Espero que sim.


p.s.: ask me

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

liberdade, liberdade

Às vezes eu reflito sobre quais de minhas ações são realizadas em plena liberdade.

Antes de mais nada, já mudei minha noção de liberdade milhares de vezes. A primeira ideia que tive era que liberdade é quando você tem a possibilidade de fazer escolhas - mas é fácil pensar em situações nas quais você tem escolhas, mas não tem plena liberdade. Por exemplo, quando você vai a uma sorveteria e só encontra dois sabores de sorvete. Você escolhe entre os dois, mas, como só há dois sabores, você não foi totalmente livre em sua escolha - sua escolha foi ditada pela contingência, por uma coisa pré-estabelecida; sua ação não foi totalmente autônoma. Logo, nunca uma escolha entre várias opções é totalmente livre.
Alguém poderia dizer que é melhor ter opção do que não ter - e que, mesmo a escolha sendo restrita, ainda assim se tem a liberdade de fazê-la. Sim, pior ainda seria se fôssemos escravos da contingência - e muitos o são. Acredito que os indivíduos que constituem as classes mais baixas da sociedade, assim como grupos estigmatizados (negros, homossexuais, e, infelizmente, mulheres), muito dificilmente agirão de forma autônoma. Quaisquer de suas ações serão feitas baseadas em escolher o que se pode escolher, e não necessariamente o que se quer fazer. E o que é pior: movimentos que tentem igualar a liberdade das pessoas, tentando, assim, anular fatos arbitrários, exteriores ao indivíduo, são vistos com maus olhos - ações afirmativas e os movimentos negro, LGTB e feminista.
"Mas, afinal", você se pergunta, "o que é ser livre pra você, Bruna?". Digo que concordo com Kant: somos livres quando agimos com autonomia - ou seja, quando agimos de acordo com um princípio criado por nós mesmo, que tem uma finalidade em si mesmo (ou seja, quando fazemos algo para atingir tal resultado, essa ação não é autônoma). Ou seja, ser bom por ser bom. Ser justo por ser justo. Escolher por escolher. É claro que damos significado para todas as nossas açõs - caso contrário, viveríamos num vazio de sentido. Mas o que eu quero dizer é que o princípio que rege todas essas ações é algo que foi criado por você mesmo, e, mesmo que você faça algo pressupondo uma finalidade, essa finalidade será apenas consequência de seu próprio ato, já que ele termina em si mesmo. Quando você é justo por ser justo, você o faz por acreditar que essa é a forma ética de agir, esperando, com isso, corrigir alguma injustiça ou dar um exemplo.

Porém, quando percebi que, sim, de fato, concordo com isso, fiquei angustiada. Muito angustiada. Porque parei pra pensar se alguma vez na minha vida eu já fui livre. E voltamos ao começo do texto.

Claro que, prontamente, já excluí todas as minhas ações baseadas numa escolha com opções restritas. Mas depois pensei melhor. E quando, dentre as opções apresentadas, há algo que eu realmente queria? Algo que eu continuaria querendo se não estivesse dentre minhas opções? Algo que eu faria como finalidade em si? Como, por exemplo, escolher um livro dentre os disponíveis na livraria. Escolher ouvir uma música dentre as disponíveis no youtube. Escolher assistir a um programa dentre os que estão passando na televisão. Sob essa perspectiva, as coisas melhoraram!, e não mais me senti tão escrava da contingência.
É claro que alguém poderia argumentar que os motivos que me fizeram fazer determinadas escolhas autônomas são fruto da contingência (que eu escolho o livro x e não o y porque a maioria das mulheres assim o fazem, ou porque é o livro valorizado pela minha classe social, ou porque meu pai gosta do livro e eu tenho complexo de édipo, interprete de acordo com sua corrente filosófica), mas eu prefiro acreditar que não, porque eu, aos meus 17-quase-18 anos já tive tempo suficiente para decidir meus próprios gostos sem interferência direta ou predominante de grupo ou instituição nenhuma.
Também excluí ações básicas do dia-a-dia, de rotina, porque, bem, não sei vocês, mas tudo o que eu faço no dia-a-dia faço ou por obrigação ou com alguma finalidade. Sobra o final de semana. No final de semana (para aqueles que o tem livre), no feriado, nas férias temos nosso momento de liberdade. E isso nos angustia. Liberdade dá angústia!, afinal, o que é o tédio dominical senão angústia devido a ociosidade? Sim, pois liberdade dá medo - quando fazemos tudo automaticamente, é fácil, é indolor, agora quando temos de fazer decisões por nós mesmos, a situação se complica, e sentimos angústia (segundo Kierkegaard, angústia é a vertigem da liberdade). Mas enfim.

O que eu realmente quero dizer é que eu me encontro livre nas coisas pequenas que faço. Ler o final de um livro, e não o começo, só pela graça do ato. Segurar as mãos do meu namorado só pelo prazer de segurar. Sentar do lado de fora de casa e olhar pro céu só por sua beleza. Sentar ao meu piano e tocá-lo só pela felicidade que isso me proporciona. Sentar à frente do computador e escrever... e escrever, e escrever.

Autonomia é um negócio complicado.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

medos e expectativas

Como eu sou partidária da ideia de que escrever é organizar o pensamento, este post que escrevo agora é com tal propósito.

Venho tentando definir o que exatamente sinto, agora que o colegial acabou e eu passei na faculdade... na verdade, eu não consigo definir sequer o que senti quando vi "você foi convocada para a 1ª matrícula" na página dos três vestibulares que prestei. É que, entendam, eu não sou a pessoa mais autoconfiante do mundo, na verdade, tendo a desvalorizar muito minhas conquistas, então ter conseguido tudo o que eu queria foi uma experiência muito interessante. Tirei um peso enorme das minhas costas (o medo de não passar e de decepcionar muita, mas MUITA gente). E eu ainda não consegui digerir o fato de que não vou mais precisar decorar fórmulas, nomes de tecidos vegetais, funções de neurotransmissores, saber quais sais precipitam e quais se dissolvem, se um conjunto de equações é possível, impossível ou possível indeterminado, qual o relevo predominante no Brasil, em que ano aconteceu a crise dos mísseis de cuba, qual a origem da relação de suserania e vassalagem, qual o sentido do vetor velocidade em uma chapa eletrizada, qual a direção e o sentido da força resultante... ocupei minha cabeça com tudo isso durante tanto tempo que agora parece estranho eu não precisar mais saber de nada disso. Parece estranha a ideia de que, nos próximos 5 anos, eu vou estudar (com algumas exceções) algo de que gosto. É claro que vou sentir falta de algumas coisas, mas a vida é feita de escolhas.
É claro que também tenho alguns receios. Tenho medo (e uma pequena certeza que tento reprimir) de que não vou ter tempo pra ler coisas por fora dos estudos. Tenho medo de não gostar (e de descobrir que aquilo não é pra mim). Tenho medo de não fazer amigos (porque, bem. empiricamente falando...). Tenho medo de não me adaptar. Tenho medo de não ser bem-sucedida (porque uma coisa é tirar notas altas no colegial... na faculdade é outra história...). Tenho medo de me perder no meio do curso. Tenho TANTO medo de ser rejeitada, de não me enturmar, de ficar num canto da sala até 2017...
Mas também tenho expectativas. Quero entrar num grupo de estudos/pesquisa, quero fazer minha iniciação científica, quero ter a melhor formação possível e vou me esforçar ao máximo pra, desde o primeiro ano, direcionar-me pra área de que gosto (filosofia do direito)... fazer amigos, encontrar minha turma... livrar-me da sombra de algumas pessoas que me acompanham desde o primeiro colegial... livrar-me da imagem que foi formada de mim (imagem que não tive chance de construir nem desfazer) e que não me representa nem um pouco... basicamente, tenho a expectativa de começar do zero. Em tudo.

Parei de escrever por alguns minutos pra olhar as flores que minha mãe comprou pra mim por eu ter passado na USP. E percebi o quanto eu não teria conseguido nada do que eu consegui se não fosse minha família (pai, mãe e irmão) me aturando. Gente, eu surtei muito em 2012. Eu estudei demais, me desgastei muito mais do que precisava - e é claro que eu descontava em quem estava mais perto.
Entre gastrites e ataques de ansiedade, entre muitas cartelas de dorflex e vidrinhos de Rescue, entre frutas e pães com geleia, entre doces da cantina e comida japonesa do mercadão passou-se meu ano do terceiro colegial. (De longe, o colegial com certeza assume o primeiro lugar do meu ranking "piores momentos da minha vida", mas meu terceiro colegial foi bem agradável, até)
Além de minha família, tenho muito a agradecer a meus amigos (dentre os quais destaco minha futura estilista favorita, Paolla Machado, companheiríssima durante o ano inteiro, dividindo comigo experiências, frustrações, expectativas, medos, ansiedades, remédios, reflexões, raivas, surtos, almoços, livros de estudo, lágrimas, o peso na consciência de passar tardes sem fazer nada e, o mais importante, foi uma das pessoas que, apesar do intenso bullying, me fez acreditar em mim mesma e no meu potencial de atingir o que eu quisesse), e, é claro, meus professores (especialmente alguns de exatas, que tiveram paciência infinita pra tirar todas as minhas dúvidas, e os de língua portuguesa, que sempre tiveram papel fundamental em minha formação).
Tenho a agradecer também a alguns lovely strangers que comentam aqui de vez em quando em anônimo e sempre fazem meu dia feliz.

Não quero me gabar, juro, não quero ser pedante, só estou escrevendo aqui para dividir com meus leitores (por eu não poder ver seus rostos, sinto-me estranhamente mais confortável) meus pensamentos e minhas conquistas - e elas são três aprovações em Direito (UFRJ, UNESP e USP/RP). Respondendo a um anônimo, vou cursar USP aqui em Ribeirão, sim.

E eis que começa uma nova fase da minha vida. A partir do dia 18 (dia da matrícula), shit will get real.

Desejem-me sorte. Beijos, que a força esteja com vocês, vivam longa e prosperamente.

domingo, 27 de janeiro de 2013

chuva

(continuação)

Ajudada pelo marido, Clarice se levantou e andou até a cozinha para tomarem um café. De lá, ela podia ouvir as pessoas conversando em voz baixa na sala. Sobressaíam-se as vozes de Carolina e Fernanda, mas Rafael e sua mãe também pronunciavam-se. Clarice suspirou. Todos estavam lá, discutindo sua vida, decidindo o que era melhor pra ela, mas é claro que ela mesma nunca era consultada. Sentou-se. Olhou para o fogão.

"Marcelo, onde está a Beta?"

Ele a olhou confuso. "Querida, você não se lembra? Ela se demitiu. Foi tentar formação em enfermaria, esqueceu?"

"Não me lembro de nada disso."
Marcelo respirou fundo e encarou seus pés, desconfortável. "Acontece que um dia você estava especialmente... bem... afetada, e Beta disse que não aguentava mais vê-la daquele jeito. Disse que queria ser capaz de ajudar. Então foi tentar fazer faculdade de enfermagem, para ajudar as pessoas. É isso."

Clarice bebericou seu café, desviou seus olhos do fogão e fixou-os nos do marido. "E quanto à Clara?"
"O que tem ela?"
"Você sabe, Marcelo. Na escola. Quero dizer, não é possível que a notícia de meu surto não se espalhou."
Ele passou a mão na testa, ainda mais desconfortável. Era difícil expor a verdade, assim, nua e crua, sobre todas as consequências do colapso de sua esposa. Ele não queria que ela se sentisse culpada, mas também sabia que, sendo quem era, ela precisava saber de tudo. "Bom, querida, algumas mães ficaram sabendo, então seus filhos começaram a mexer com nossa filha... uma ou outra professora tentou conter a sala, mas outras eram partidárias de que você mereceu, de que você precisava de freios. Então eu a tirei daquela escola."
Ela tentava conter as lágrimas que afloravam ao pensar em tudo por que sua filha tinha passado. Ela certamente não merecia nada daquilo. Mas pessoas são cruéis, crianças são cruéis. Tomou mais um gole do café. "Então onde ela está estudando agora?"
"Eu descobri que um colega seu, do conservatório, era professor de música em uma escola não tão conhecida. Fui conhecê-la e gostei. Aparentemente, esse seu colega impediu que os fatos sobre você se espalhassem e fez uma dinâmica muito interessante com as crianças sobre fenômenos mentais, psicológicos. Foi bem interessante, e de grande ajuda. E Clara está feliz, acima de tudo. Só tem um problema."
Clarice olhou para fora e viu sua filha correndo até o balanço na árvore e sentando-se. Ela tinha uma rosa amarela na mão.
"Ela não suporta ouvir violinos, Clarice. Na verdade, até orquestras a incomodam. Acho que, na cabeça dela, a música é culpada pelo que aconteceu com você."
"Ah, a culpa não é da música. É minha. Eu gostaria de dizer que não, mas... se não fosse minha, de quem seria?". Descansou sua xícara na mesa e levantou-se, indo em direção à sala. Parou na porta que dividia os dois ambientes. "Vem comigo?"
"Eu estou logo ao seu lado."
Abriu a porta.

Todos pararam de falar. Carolina, que estava sentada, levantou-se num salto e foi correndo até sua irmã. "Eu não queria que tudo isso acontecesse, irmã. Eu só queria presentear-lhe, e sempre achei que você levasse jeito pra escrever, e..."
Clarice interrompeu-a, segurando-a pelos ombros. "Carol, você fez certo."
"Mas você está diferente, e eu não sei se isso é bom ou ruim, e..."
"Carol, isso é bom, muito bom."

"Mas..."
"Carol, eu precisava disso. Precisava do seu presente, e do livro de Fernanda, e das flores de Alice. Eu precisava de tudo isso pra me lembrar de quem eu sou, de quem eu fui.". Ela apertou as mãos em seus ombros, depois a abraçou. "Vai ficar tudo bem. Muito obrigada."

Então, dirigindo-se a todos da sala, aumentou a voz. "Obrigada por terem vindo. Obrigada por hoje. Obrigada, Carol, Alice e Fernanda, por terem fornecido o combustível, e mamãe, por ter fornecido a faísca que proporcionaram a explosão interna que me acordou. Agradeço por mim e por minha família.". Cumprimentou todos com um abaixar de cabeça, foi até Alice e beijou-a na testa, pegou sua filha pela mão e retirou-se.
Chovia.

Agora Clarice dirigia-se à porta da frente. "Menina, seu pai me contou que você não gosta do som do violino."
Clara fez uma careta. "Não gosto, mamãe. Me incomoda. Acho que sinto dor."
"Bom, nós vamos mudar isso, não vamos? Porque você adorava quando mamãe tocava violino, e eu talvez volte a tocar um dia. Nós precisamos de música, criança. E não se preocupe, mamãe não vai desmaiar toda vez que chegar perto de um instrumento."
Clara balançou a cabeça.

"Por falar nisso, você tem vontade de aprender a tocar alguma coisa?"
A menina desviou os olhos, olhando para frente. "Você vai ficar brava se eu não quiser tocar violino?"
Clarice abaixou-se para ficar na altura na menina. "Claro que não. Você tocará o que quiser, quando quiser. A escolha é só sua."

Ela sorriu. "Eu queria saber tocar piano." Clarice devolveu o sorriso e levantou-se. Saíram pela porta da frente.

"Clarice?", a voz de Marcelo interrompeu seu pensamento. "O que você vai fazer agora?"
Ela parou. Não estava pensando, na verdade um grande vazio apossava-se de sua mente; agora que tinha se libertado de antigos pensamentos, sua cabeça tinha espaço livre pra ocupá-lo como bem entendesse. "Eu não sei, e gosto disso. Vou fazer o que eu quiser. E, agora, eu quero andar na chuva.". Ela soltou a mão de sua filha, soltou a mão de seu marido, e saiu pela porta da frente.

Chovia, mas também fazia sol, e Clarice andou por sua rua com seu melhor vestido de festa.

-fim-

sábado, 19 de janeiro de 2013

não se afogue, clarice

(continuação)

"Tia, você não gostou?"
Clarice abriu os olhos e viu que a menina ainda esperava sua palavra final. "Mas é claro que eu gostei, pequena. Elas me trazem boas memórias.". Sorriu para Alice, que enrubesceu e se deu por satisfeita.
"Eu também lhe trouxe algo". Dessa vez foi Carolina, sua irmã, que se pronunciou, entregando a Clarice uma caixa, que a abriu. Dentro, havia uma caneta tinteiro e muitas folhas de um papel muito bonito. Olhou para a irmã, intrigada. "Sempre achei que você escrevia muito bem. Sei que você parou para se dedicar à música, mas agora, bem...", e então ela deu uma pausa para escolher as palavras com cuidado: "agora você tem tempo.". Clarice sorriu para ela. Escrever. Sim, era uma ideia muito interessante.
"Carolina!"
Do outro lado da sala, a mãe levantou-se bruscamente da poltrona em que estava sentada. "Você está louca? Dando essas ideias pra sua irmã, que já está tão frágil?"
"Como, mãe?"
"Se ela está assim letárgica sem ter de fazer esforço mental nenhum, imagine se tiver que começar a pensar, para escrever! Você está louca!"
Essa última frase ecoou pela sala. E, após um curto silêncio, várias vozes começaram a falar ao mesmo tempo.
"Mãe!"
"Diana, é de sua filha que você está falando!"
"Clarice precisa de um tempo para se recuperar!"
"Minha esposa não está letárgica, ela está traumatizada!"
"Eu não estou fazendo esforço mental nenhum?". A voz fraca de Clarice estava forte e clara, apesar de baixa, quase um sussurro. "Você acha que eu não penso, mamãe? Bem, então vou te contar como tem sido minha vida há seis meses. Todos os dias eu acordo frustrada por ainda estar viva. Todos os dias eu sinto o cheiro de hortelã entrando pela minha casa e me lembro que ela foi plantada no maldito dia que estragou minha vida toda. Todos os dias eu sinto uma dor de cabeça que me diz claramente que eu não estou nem um pouco feliz. Do momento em que eu abro os olhos até o momento em que eu os fecho, sinto-me culpada por não ser a mãe que minha filha merece ou a esposa que meu marido merece. Todos os dias, mas todos os dias mesmo, eu me sinto completamente inútil por ter perdido a habilidade de fazer a única coisa que eu fazia sozinha e que ainda fazia meus olhos brilharem, que ainda me fazia esquecer de quem eu realmente era. Hoje me sinto completamente vazia e ainda não sei com o que preencher essa ausência de não sei o quê. Mas eu não posso trabalhar fora de casa, pois eu mal escuto meus próprios pensamentos, como vou seguir ordens? Já tentei me matar, mamãe. Duas vezes nos últimos seis meses. Nessas ocasiões, esse vazio tomou conta de mim de forma tão ntensa que eu não via nenhuma outra solução além de me entregar completamente a ele. Mas se você acha que eu estive assim só nesses últimos meses, engana-se. Engana-se porque eu a enganei, porque eu enganei a todos, porque eu fiz todos acreditarem que eu estava feliz. E eu conseguia fingir muito bem, durante um tempo consegui até me enganar, mas no dia em que eu subi no palco e vi meu marido e minha filha olhando para mim com tanta admiração, tanto orgulho, tanta expectativa, tanto amor, que eu não consegui mais suportar o peso da mentira e sucumbi. Eu... sucumbi. Desde aquele dia, sinto que parei de me afogar em minha própria culpa por esconder minha infelicidade. Agora eu só nado nela. Às vezes consigo até boiar nela. Mas ela ainda está aqui. A culpa, a miséria, o sofrimento. A única diferença é que agora vocês conseguem ver minha verdadeira essência porque eu não tenho mais forças para escondê-la. Então, mamãe, prazer em conhecê-la. Eu sou sua filha. E eu penso. Até mais do que o necessário."
Carolina e Fernanda a encaravam com piedade. "Parem de me olhar assim. Odeio que sintam pena de mim.".
Marcelo a olhava completamente derrotado. Sentia que havia falhado com ela em todos os sentidos. "Marcelo, não é sua culpa. Eu sou assim. Mas posso garantir-lhe que as experiências que eu tive de felicidade foram ao seu lado. Por favor, não se culpe."
Rafael andou até Clarice e segurou-lhe as mãos. "Por favor", ele dizia cada palavra entre engolidas em seco, "por favor, não nos deixe. Eu não sei o que eu faria sem você. Por favor, Clarice, você é a pessoa mais forte que eu conheço. Se você desistir..."
Ela acariciou o rosto jovem do irmão. "Você é muito mais forte do que eu. Quem de nós teve que ver a própria irmã ter um surto psicótico?". Então andou até Carolina. "Eu adorei a ideia de escrever. De verdade. Talvez fazê-lo seja como usar um colete salva-vidas no meu mar de sofrimento. Muito obrigada por ter tido a coragem de me dar isto", disse, batucando com seus dedos na caixa.

"Quanto a você", ela disse, abaixando-se para ficar na mesma altura de Alice, "muito obrigada por me fazer acordar."

Ela saiu andando da sala, ignorando o protesto em forma de silêncio que se formava a cada passo que ela dava. Atravessou a cozinha e saiu pela porta dos fundos. Devia ser pouco depois do meio-dia. A claridade já não a incomodava mais. Na verdade, pela primeira vez em muito tempo, Clarice se sentiu abraçada pelo sol. Estava se sentindo meio tonta, seus sentidos estavam mais atinados, era realmente como se ela tivesse acordado de um sono muito longo. Deitou-se na grama. O cheiro da hortelã ainda estava ali - mas agora era agradável. Era uma sensação muito boa. Não que ela estivesse feliz. Mas também não estava miserável. Seu coração só não estava mais tão apertado. Não doía mais pra respirar. Verbalizar suas sensações tinha ajudado a colocá-las em ordem. Seus pensamentos não mais fluíam sem curso nenhum - agora ela sabia falar de onde todos vinham e aonde iam.
Respirou fundo.
Ela conseguiria dormir ali.
Estava tudo tão quieto. Será que foram embora? Clarice não ouvia nada além do vento, de alguns pássaros e do bater de asas de uma borboleta que passava por ali. Isso era possível? Quero dizer, ouvir as asas de uma borboleta. Acho que não. Devia estar enlouquecendo. Mais? Difícil. Ah, diabos, qual era o problema de se ouvir as asas de uma borboleta? Virou-se de lado - agora ela encarava a árvore em que o balanço de sua filha estava pendurado. As folhas mal se mexiam com o vento. Era uma árvore grande - estava ali, de pé, mesmo após tantas tempestades, raios, ventanias. Essa árvore, sim, devia servir de modelo às pessos. Clarice, não diga besteira, como uma árvore serviria de exemplo a humanos? Começou a rir sozinha. E, rindo sozinha, não percebeu Marcelo se aproximando. Está tudo bem, Clarice? Precisa de ajuda, Clarice? Está frio, Clarice. Vá dormir, Clarice. Por que está rindo, Clarice? Você está doida, querida! Ela se sentou.
"Eu não estou doida e não preciso de ajuda."
"Não ia oferecer ajuda. Você claramente não precisa de ajuda. Nunca a vi ser tão verdadeira. E, na verdade, ia oferecer uma xícara de café. Quer? Reza a lenda que escritores fazem bom proveito de café". Clarice levantou a cabeça para encará-lo. "Muito bem. Que tomemos café."

(continua)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

rosas amarelas

Muitas vezes sua própria casa lhe parecia estranha, desconhecida. Agora, mesmo, ela estava sendo guiada pelas mãos como uma criança por seu marido - pelo corredor, descendo as escadas, virando aqui e ali, até chegar à sala de visitas.
Todos estavam ali. Bem, não todos literalmente - apenas os que não haviam renegado Clarice após seu colapso. Seus pais, seus irmão e irmã, sobrinhos e sobrinhas, até a irmã de Marcelo (e seu marido, e sua filha)... todos ali, para vê-la, para acompanhar sua dita recuperação, para mostrar-lhe que se importavam com ela...
Sem ela os ter chamado.
A última coisa que Clarice queria era que essas pessoas, que ela tanto amava, a vissem daquele jeito. Ela sentia que o que motivava alguns a ainda visitá-la era pena; outros, saudades de como ela um dia fora. Mas ninguém queria vê-la simplesmente por vê-la. E isso machucava muito.

Um violino.

Passaram por um violino.

Clarice esticou a mão para a frente, esticou os dedos, como se numa tentativa de alcançá-lo, mas ele estava longe - ou será que não estava, num primeiro momento, mas afastou-se dela? Com o braço ainda esticado, começou a dedilhar algumas músicas. Ela podia sentir os calos em seus dedos, podia lembrar-se da sensação de apertar os dedos contra as cordas, quase conseguia ver a música que dançava ao seu redor, em sua memória. Que saudades de tocar violino. Que saudades da música. Não se lembrava da última vez que havia ido a um concerto, a uma ópera. Sentia falta disso. Sentia falta da música. A mesma música que um dia deu-lhe tudo, e que num outro tirou-lhe tudo.

"Clarice, por favor, olhe no rosto das pessoas quando elas falam com você, sim?", ouviu seu marido sussurrar-lhe ao pé do ouvido, forçando-a a voltar ao presente. Ela olhou-o, depois olhou ao redor, para localizar a quem ela deveria estar escutando. Pela expressão mista de expectativa e de decepção, devia ser Rafael.
"Desculpe por não ter prestado atenção, Rafael. Por favor, repita.", Clarice disse, a seu irmão, de forma um tanto mecânica.
"Eu estava dizendo que você parecia melhor, pequena. E repito o que disse, porque da última vez que a vi sequer ouvi sua voz."
"Sim, eu me lembro... eu me lembro. Você nos visitou na semana em que Marcelo plantou hortelã no quintal..."
Ninguém sabia ao certo como responder a essa constatação. Talvez por não entenderem o que era a hortelã para Clarice.
"Clarice, eu lhe trouxe um presente!", disse, por fim, Fernanda, a irmã de Marcelo. Ela pegou um embrulho retangular e colocou-o nas mãos de Clarice. "Espero que você se entenda melhor ao terminar de ler. E, quem sabe, talvez, mude um pouco a visão que você tem da vida."
Clarice olhou do embrulho para Fernanda, e de volta para o embrulho. Abriu-o como quem manipula um cristal e surpreendeu-se ao ver que o presente era um livro. Hermann Hesse. Ela conhecia o autor - ele recebera o prêmio Nobel de literatura. Devia fazer alguns meses desde a última vez que lera um livro. A última vez fora, bem, antes... daquilo acontecer.
"É normal. Ela às vezes não parece estar na nossa realidade. Mas é só chamá-la de volta que fica tudo bem."
"Eu estou bem aqui ainda, Marcelo."
"Minha filha também tem algo para você, querida.". Fernanda olhou para sua filha, encorajando-a. "Vamos, Alice, mostre para sua tia o que você trouxe."
A menina andou timidamente até Clarice e entregou-lhe um buquê de rosas amarelas. "Elas me lembram você.". Clarice pegou-o das mãos da menina, que não devia ter mais de seis anos; levou-o ao rosto para sentir-lhe o perfume...

...era um dia muito bonito. Ensolarado, colorido, quente. Ela desceu as escadas correndo ao sentir cheiro de calda de chocolate.
"Ah, Beta, vou precisar mesmo de um bolo quando voltar para casa!", disse, rodeando a cozinheira e dando-lhe um beijo na bochecha. "Muito obrigada!". A cozinheira riu e mandou Clarice sair de sua cozinha, pois ela estava atrapalhando. "Se você ficar aqui, a massa não cresce."
Ela continuou andando pela casa, saiu pela porta dos fundos, que dava para o quintal, e viu Marcelo sentado na grama, mexendo com terra. Sua filha, Giovana, brincava no balanço.
"E o que o senhor está fazendo?", ela disse, sentando-se ao lado dele. "Que cheiro maravilhoso..."
"Hortelã. Todos os dias de verão vamos acordar com esse cheiro entrando pela janela. Fui ao mercado comprar as sementes e essas mudas enquanto você estava dormindo. Era pra ser uma surpresa, eu não esperava que você fosse acordar tão cedo.
"Cedo? São dez horas!", ela disse, beijando-lhe a testa e levantando-se para ir de encontro à filha. "E você, o que está fazendo aqui, mocinha?"
"Estava balançando, mamãe. Na verdade, eu estava quase voando.". A menina perdeu impulso e desceu do balanço, abraçando a mãe.
"É uma sensação deliciosa, não é, minha pequena? Quase voar."
"Você já voou, mamãe?"
"Ah, já! Sempre que a mamãe ouve música ela se sente como se estivesse voando. Quando gostamos muito de alguma coisa nos sentimos assim. Quando eu conheci o papai eu me senti assim. Quando você nasceu eu me senti assim."
"O que tem o papai?", Marcelo disse, aparecendo atrás dela. "Para você, querida. Para sua apresentação de hoje.", dizendo isso, entregou-lhe um buquê de rosas amarelas. "Eu sei que elas trazem sorte".
"Com certeza, meu amor.", e Clarice beijou os lábios do marido. "Vamos, precisamos comer alguma coisa, pois saímos em uma hora.". Giovana pegou sua mão. Marcelo colocou o braço em torno da cintura dela. Clarice fechou os olhos para ter um registro disso para sempre.
Era como se ela soubesse que, duas horas depois, ela estaria deitada inconsciente no palco do maior teatro da capital.

(continua)