sexta-feira, 12 de abril de 2013

lasanha e vinho

- Carlos.
- Fala.
- O que eu tô fazendo?
- Não sei, mas eu tô é tentando dormir.

- Carlos.
- Que foi.
- Você tá dormindo?
- Tô, não tá vendo?
- Não tá não.
- Tô sim.

- Carlos, o que eu tô fazendo?
- De novo isso? Não sei, criatura. Me impedindo de dormir?
- Não, Carlos. O que eu tô fazendo da minha vida?
- Como assim, da sua vida, Clarice? Que papinho, hein.
- Ai, não sei. É que essa noite eu tô com isso, sabe.
- Com isso o quê, mulher.
- Nossa, quanta indisposição...
- São duas horas, Clarice. E eu acordo às sete.

- ô Carlos...
- Tá bom, anda, fala.
- Bom, começou quando eu cheguei em casa e esquentei a lasanha pra gente.
- Hã.
- Aí eu tirei a lasanha do micro-ondas, coloquei em cima da mesa...
- ...eu abri o vinho...
- Sim, você abriu o vinho... liguei a televisão, tava passando o jornal...
- ...ah sim, o jornal...
- E nós comemos, assistimos, conversei com a Paulinha pelo telefone, tomei banho e vim deitar.
- E onde é que tá o drama, Clarice?
- Como, onde? Isso tudo é um drama! Quero dizer, olha só a que se resume nossa noite: a vinho, lasanha e televisão.
- Qual é o problema?! Depois de trabalhar o dia inteiro, você queria fazer o quê?
- Ai, não sei, Carlos. É que acho minha vida meio vazia, só isso.
- Você tá pensando nisso desde a hora que se deitou?
- Sim. É que essa lasanha, esse vinho...
- Qual o problema da lasanha e do vinho? Por que você encanou com eles? Lembrando que quem comprou a lasanha foi você.
- Problema nenhum, Carlos, você não tá entendendo. Mas é que a lasanha...
- Coitada da lasanha, Clarice. Ela só queria te alimentar. Só isso. Você que tá complicando.
- ...a lasanha, sabe, você só coloca no micro-ondas e ela tá pronta. Suculenta. Não tão boa como algo que demora a ser preparado, caseiro, em que você empenha seu tempo e amor... mas ela também é boa. E eu me acostumei com isso.
- Com a lasanha?
- Com a ideia de coisas prontas, Carlos! Com a ideia de não empenhar meu tempo em nada.
- E a lasanha te levou a pensar isso?
- Não, tem o vinho, também...
- O que tem o vinho? É do Porto, seu preferido... enjoativamente doce...
- Pois é, Carlos... pois é. Você toma um gole aqui, outro ali, quando te convém, desse doce fantástico... mas tudo o que resta, no final, é uma garrafa vazia.
- E gastrite.
- E gastrite. Então, me diz, é essa a vida que você quer viver? Uma vida de lasanhas e vinhos?
- No sentido figurado ou no sentido literal?
- Claro que no sentido figurado, né, Carlos! Não tô pedindo pra você renunciar ao seu gosto por lasanha.
- Aquela lasanha que você comprou tava fantástica. Também não quero renunciar ao meu gosto por vinho.
- E por vinho. Eu também adoro.
- Clarice, você não é um jantar composto por uma garrafa de vinho e uma lasanha.
- Não sou?
- Não é. Você não se esvazia quando as pessoas se levantam da mesa e lavam seus pratos.
- Ai, essa foi a coisa mais linda que você me disse nessa semana.
- Sou um poeta.
- É nada.
- Claro que sou! Olha meu nome.
- Nesse caso, meu nome também me qualifica.
- Que crise, hein, dona.
- É que essa lasanha, esse vinho, botam a gente comovido como o diabo.
- Essa frase é minha.
- É nada. Boa noite.
- Boa noite.

terça-feira, 2 de abril de 2013

i'm a fool to want you

Hermínia chegou à faculdade no horário de sempre. Estacionou seu carro popular prata, acenou para um ou dois colegas e se pôs em direção ao prédio onde estudava. Como um cérebro de qualquer estudante, o dela já estava sobrecarregado de lembretes, conceitos, tarefas e datas. Tudo isso antes das oito.
Deixando-se guiar pelo piloto automático - que determinou que suas pernas a levariam até a biblioteca -, ela mal percebia as pessoas que passavam ao seu lado (também era função do piloto automático dar um aceno de cabeça para os amigos que cruzavam seu caminho). Entre armários e estantes e catracas e livros, Hermínia foi se sentar no seu já marcado território da biblioteca para estudar.
Mal ela tinha aberto o primeiro livro, ele apareceu diante dela.
Ele apareceu e aquela música da Billie Holiday começou a tocar na cabeça dela.
I'm a fool to want you, to want a love that can't be true.
Ela sorriu. Ele parecia sorrir de volta. Sempre tão arisco, tão fugidio, como água entre os dedos. Sempre tão perto, mas simultaneamente tão distante. Muito cruel, ele. Às vezes se mostrava muito próximo, tão possível, tão familiar; e outras vezes se comportava como um estranho. Ela não entendia. Era uma relação muito complicada. Mas, por algum motivo, ela não conseguia se desvencilhar daquilo tudo; por alguma razão, isso só o tornava mais atraente, interessante, complexo...

Não que fosse fácil sentir-se constantemente incapaz de conquistá-lo. Ela via a relação dele com as outras pessoas - parecia tão fácil e saudável! Frequentemente parecia que as outras faziam muito menos esforço do que ela para conseguirem certa proximidade com ele. Por que ela não conseguia? O que estava fazendo de errado? Sua abordagem estava falha? Será que ela precisava de ajuda?

* * *

Ele estava em sua vida havia um tempo. Alguns anos, na verdade. Aliás, pra falar a verdade verdadeira, ele sempre esteve em sua vida, mas somente de alguns anos pra cá é que essa relação tomou forma (mesmo que uma forma confusa, indefinida; mas forma). E nunca ele pareceu tão inalcançável quanto agora.
Talvez porque ela o tenha conhecido melhor, compreendido o que era necessário para alcançá-lo em sua integridade - e uma parte sua insistia em negar a tão clara e notória possibilidade de que ele talvez nunca pudesse ser totalmente conquistado. Muito cheio de detalhes e manhas, ele. Sempre que ela achava que estava chegando perto, ele colocava outra barreira, outro empecilho, outra questão. E ela tinha de se afastar.

* * *

Time and time again I said I'd leave you; time and time again I went away; but then would come the time when I would need you, and once again these words I had to say: take me back, I love you. I need you.
Saindo da biblioteca, Hermínia decidiu parar na cafeteria para se dar ao luxo de tomar um capuccino (bastava de chá-de-café). Mas mesmo lá, fora de seu habitat (que, naturalmente, era a biblioteca ou a sala de aula), ele a perseguia. Talvez só para ter o prazer de jogar em sua cara que ela nunca o teria. Talvez só para marcar presença em seu pensamento. O fato é que ele nunca a abandonava, de uma forma ou de outra. "Será que algum dia ele vai me deixar em paz?", ela pensava. "Será que eu sempre vou precisar tanto assim dele?"... mas ela sabia a resposta. Sim, ela sempre precisaria dele, porque ela escolheu precisar. O caminho que ela decidiu traçar está intrinsecamente ligado a ele. E sempre vai estar. Porque ela precisa dele, e, de certa forma, ele também precisa dela, pois, sem admiradores, ele seria um completo vazio.

"Ele."

"Esse amante tão insensato, que me tira do sério, que me tira noites de sono, que me deixa cada vez mais apaixonada por ele, que me deixa cada vez mais frustrada por não tê-lo só pra mim, por ter de dividi-lo, por exigir de mim constante mudança e aprimoramento..."

Ele. O conhecimento.