quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

aos 30

Eu estava passeando com meu marido e com minha filha de 5 anos quando passam por mim figuras dignas de atenção: um jovem casal de namorados. Minha filha parecia olhar curiosamente para o casal, que, por sua vez, parecia não notar o mundo ao seu redor.

Eu me lembro de quando tinha meus 15 anos, meu primeiro namorado. Primeiro e único, estou com ele até hoje. Quando eu tinha 15 e ele 16 anos éramos tão cheios de vida, felizes, despreocupados. Eu o amava tanto. Eu entendo esse casal de namorados andar como se não notasse nada nem ninguém, eu era igualzinha. É tão bom ser jovem. É tão bom ter vitalidade e bochechas rosadas 24 horas por dia.

- Mamãe, porque aqueles dois estão de mãos dadas? - minha filha perguntou.
- Porque eles são namorados, filha. Eles se amam e resolveram ficar juntos por causa disso - respondi assim. Nós duas e meu marido nos sentamos numa cafeteria próxima, e eu pedi um café com chantilly - minha filha adora chantilly.

É engraçado pensar naquilo... "Eu o amava muito". Eu ainda o amo, mas com certeza alguma coisa mudou... Nós crescemos, e acho que esquecemos como é amar incondicionalmente e inconsequentemente, de certa forma. Conforme crescemos a vida vai ficando mais difícil e severa, e nós somos forçados a pensar em outras coisas além do amor.

Por isso é tão bom ter 16 anos. Vendo aquele jovem casal, acho que me lembrei de como eu era aos meus 16. Peguei um pouco de chantilly com meus dedos e passei no nariz de meu marido. Ele olhou pra mim, riu, e vi em seus olhos a expressão de que tanto gostava quando éramos jovens. Como nós dois mudamos... Acho que assim é melhor. Precisamos crescer e amadurecer, acordar para a vida. Mas eu desejo tudo de bom para aquele jovem casal. Eles nunca vão se sentir assim de novo.

- Estou me sentindo velha - eu disse para meu marido.
- Você sempre vai ser aquela boba de 15 anos para mim. - Ele disse, com um sorriso. - Agora você tem mais celulite, só isso, mas eu ainda te amo.

Eu lhe dei um tapa mais não pude resistir ao sentir a risada vindo de dentro de mim.

Como na natureza nada se perde; tudo se transforma; o amor também não é perdido ou esquecido. Por ser algo natural de nós, humanos, o amor se transforma de acordo com nossa vida e nossas necessidades (e com as pessoas, também). Por isso existem diferentes formas de amor, mas não deixam de ser amor.

Meu marido pediu a conta, e fomos embora de lá.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

aos 5

Eu estava lá, andando de mãos dadas com minha mãe, quando vejo um moço e uma moça andando juntos, de mãos dadas também, como minha mãe e eu. E eu fiquei pensando. A moça não parecia ser a mãe do moço. E ele não parecia ter alguma dificuldade pra andar. Então por qual motivo os dois estavam de mãos dadas?

Minha mãe me ensinou a não ficar encarando as pessoas, mas eu não conseguia parar de olhar pra aquele moço e aquela moça. E os dois não faziam nada além de andar, se olhar e sorrir. Que graça tem em ficar andando, se olhando e sorrindo? Eu faço isso com minha mãe também. Então porque o moço não está com a mãe dele? Ou a moça com a mãe dela? Não faz sentido.

Será que os dois são irmãos? É, pode ser. Ou não. Eu não me dou bem com meu irmão que nem esses dois, aí. Nossa, que saco. Esses dois estão me seguindo? Eles estão em todo lugar que eu estou... Não, acho que não... Eles parecem nem notar minha presença. Aliás, eles parecem não notar que o mundo está ao redor deles. E o mundo está girando. E a máquina de algodão doce está fazendo algodão doce. Mas nada disso parece importar pra eles. Que coisa.

- Mamãe, porque aqueles dois estão de mãos dadas? - eu pergunto para minha mãe.
- Porque eles são namorados, filha. Eles se amam e resolveram ficar juntos por causa disso - ela respondeu.

Ah, então eles são namorados. Engraçado. Essa palavra é engraçada. Eu já ouvi falar desse negócio de "namorados" na televisão, na escola... Mas não eram iguais a esses dois. Esses dois se olhavam de um jeito diferente. Parecia que só de ficar perto deles você ficava mais feliz. Não paravam de sorrir e de se abraçar. Parece ser tão gostoso, como será que é se sentir assim? Esse negócio de amor?

Eu amo minha mãe, meu pai e meu irmão, mas acho que não é a mesma coisa. Eu não beijo meu pai e minha mãe na boca. Mas eu já vi papai e mamãe se beijarem na boca. O que diferencia? Será que é um amor diferente? Mas o nome é o mesmo: amor. Então acho que por dentro é a mesma coisa, mas a forma de expressar é diferente? Que confuso. Que bom que eu sou criança, não quero um "namorado" tão cedo.

Apesar de que eles pareciam bem felizes juntos... Como papai e mamãe.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Folha de São Paulo

11/05/1985

Foi encontrada ontem morta em seu apartamento a dona-de-casa Valentina Pires. Ela esteve presente em várias revoltas contra a ditadura quando mais jovem, e era uma das pessoas mais procuradas pelo antigo DOPS. Valentina fez parte de um dos MNR (Movimentos Nacionalistas Revolucionários) aqui da capital de 1965 até 1971, segundo relatos de seu diário (encontrado em cima do criado-mudo em seu apartamento), organizando revoltas, capturando policiais, orientando outras pessoas sobre a ditadura e divulgando os horrores que o DOPS fazia com seus presos políticos. Era conhecida como Maria.

A causa da morte foi envenenamento (o veneno ainda não foi divulgado), e ao lado de seu corpo foi encontrado um bilhete: "Enfim, a ditadura conseguiu me envenenar por completo. Não posso viver com ela, não posso viver sem ela.". Em seu diário, ela expressava sua necessidade por uma revolução e seu gosto por passeatas e revoltas, e quando a ditadura teve seu fim convicto, em suas palavras, "Minha vida toda eu lutei contra a ditadura, o controle de idéias e a restrição de ações. Agora que a ditadura acabou, o que eu vou fazer?".

Apesar de que agora o que mais se encontra é gente morta em esquinas, apartamentos, casas e estradas, essa morte pareceu afetar profundamente os nervos de antigos militares, principalmente com a divulgação confirmada de seu diário, que, como não tem título definido pela autora, será chamado "o Diário de Maria".

Lembramos que qualquer relação com "O Diário de Anne Frank" é pura coincidência.

- FIM -

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

10/05/1985

Há tempos não escrevo aqui. A última vez que escrevi foi mês passado, abril... pois bem. Em um mês, a história mudou completamente.

Decidi fazer parte do movimento Diretas Já. Resolvi seguir o senhor Teotônio, pois suas palavras me pareciam extremamente promissoras. Sonhar com um Brasil de eleições diretas era bom. E depois de tantos anos parada, me dei ao luxo e risco de participar de mais passeatas.

Então dia 27 de novembro, aconteceu uma passeata em São Paulo, 15 mil pessoas. Se o senhor Teotônio tivesse visto, estaria orgulhoso... Esta aqui é pra você, Teotônio! Mas o infeliz morreu no dia da passeata. E que morte terrível... câncer generalizado. Eles te pegaram, Teotônio... te infectaram. Você até que resistiu bastante, mas no final, eles se juntaram, ficaram muito fortes, não dava pra combatê-los. Quem sabe um dos teus filhos, Teotônio Vilela Filho, não vira político pra honrar teu nome? Eu votarei nele, um dia.

1984 passou relativamente tranquilo. Eu ainda esperava por uma mudança no sistema, quando 1985 chegou. Chegou janeiro, fevereiro, março, em abril comecei a escrever meu diário, mas parei, quando vi rumores sobre tirarem militares do poder. Então anteontem foi aprovada no Congresso uma emenda que acabava com a ditadura. Eu não pude acreditar! E inclusive teríamos eleições diretas. Enfim, Teotônio! Tua batalha não foi em vão.

Isso significava que finalmente poderíamos ser livres. Isso significava que eu não sobrevivi à ditadura à toa... Esta era minha recompensa. Por perder minha família, por perder meu amor, por perder minha dignidade, por ter sido torturada, por ver meu país, minha CASA ruir. Mas e agora?

Minha vida toda eu lutei contra a ditadura, o controle de idéias e a restrição de ações. Agora que a ditadura acabou, o que eu vou fazer? Voltar ao meu trabalho antigo? Procurar outro amor, formar uma família e passar meus finais de semana assando bolos? Isso não tem nada a ver comigo. Então só há uma coisa a ser feita.

(continua)

domingo, 10 de janeiro de 2010

04/04/1985

Com a censura, nossas atividades e relações com a imprensa foram cortadas. Não havia mais chance de nosso grupo aumentar de qualquer jeito. Mas meu grupo se manteve forte. Hoje, desejo que tivéssemos sido fracos. Durante 1969 e 1973, vivi na pobreza. Com aquela história de "milagre econômico", alguns ficaram muito ricos, e alguns muito pobres. Infelizmente, minha opção é a segunda.

Então aconteceu. Em 1971 foi quando aconteceu. Estávamos fazendo mais uma de nossas costumeiras passeatas, quando um grupo de militares surgiu. Aparentemente estavam à espreita... como se já soubessem por onde íamos passar. Eles chegaram e começaram a tacar bombas para todos os lados. Vários de meus companheiros caíram e acabaram morrendo. Eu corria para encontrar João, mas quando o encontrei, ele disse para eu recuar. E foi só eu parar de andar, que dois policiais se tacaram em cima dele... Um segurando seus braços, e o outro batendo-o com sua arma, mesmo. Ele evitava me olhar, pois sabia que entregaria minha posição. Então eu corri.

Corri em direção ao nosso esconderijo, fazendo muitas curvas e pegando o caminho mais longo. Chegando lá, vi muitos papéis e documentos em cima da mesa. RGs, passaportes e dinheiro, inclusive. Aparentemente, meu João planejava nos pagar uma viagem fora da lei para o Reino Unido - eles viviam um período de recessão econômica mundial e competição industrial, então era uma ótima oportunidade de trabalho. Eu já me afastava da mesa quando me lembrei de olhar direito para o RG de João... e foi a primeira vez que fiquei sabendo de seu nome verdadeiro. Gustavo. E ele era exatamente como o significado de seu nome...

E durante os 3 anos seguintes, vivi uma meia realidade. O Rock estava estourando. Comecei a me drogar. Eu não queria mais saber de nada. Fui presa, torturada. Fugi nas duas vezes que me prenderam. Então me cansei. Me cansei de ficar sentindo pena de mim mesma. E em 1975, decidi começara trabalhar, para ocupar a cabeça. Eu tinha diploma em medicina, mas acho que isso não me ajudaria muito. Eu não conseguiria arrumar um emprego bom de verdade, porque eu obviamente não tinha o "atestado ideológico" fornecido pelo DOPS. Fui então trabalhar numa creche da minha vizinhança. Pagavam bem e o almoço era por conta dos donos. Eu gostei bastante do trabalho, sempre gostei muito de crianças, e, ao meu ver, era hora de eu me sentir mais... mulher, mesmo. Eu passara muitos anos lutando ao lado de homens, e no meu grupo todos éramos iguais. Mas nessa creche, eu me sentia quase uma mãe.

E eu trabalhei lá até 1983. Então um belo dia, estava eu sentada, assistindo a tv na creche, quando vejo um programa novo: Canal Livre, liderado pelo senador Teotônio. Ele dizia que devíamos lutar por eleições diretas, e que novas manifestações estavam por vir. Como resistir?

(continua)

03/04/1985

Certo. Não sei bem o que devo escrever em um diário... Mas visto que estou sozinha, não há muito a se fazer. Se eu não coloco as coisas no papel, se eu explodir não vai ser uma grande surpresa, mas enfim.

Nasci em 1940. A passagem da minha infância para a adolescência foi marcada por aquele glamour falso dos anos 50 - carros brilhantes, saias rodadas e muitos neons. Mas eu nunca gostei daquilo, não. Me lembro de que eu ia todo fim de semana ao cinema para fazer nada mais, nada menos do que entregar panfletos visando chacoalhar a cabeça das pessoas um pouco. Sabe? Acordá-las para a vida. Fazê-las saírem daqueles carros enormes, e olharem para quem está sentado na calçada.

E foi numa dessas vezes que eu vi meu marido (bom, ex-marido) pela primeira vez. Ele ia assistir a um filme qualquer, não me lembro bem. Ah, mas de uma coisa eu me lembro: dos olhos! Os olhos de quem não estava realmente naquele lugar. Os olhos de quem fantasiava e sonhava muito, mas não sonhos inúteis - sonhos de revolução. E eu estava certa, de fato.

Então em 1965 - ano seguinte do golpe militar, como todos sabem - resolvi fazer parte de algum grupo para ver se a situação mudaria no nosso país. Entrei em um dos MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário) e lá fiquei. Acho que foi a fase mais produtiva da minha vida. Organizávamos passeatas, distribuíamos panfletos, driblávamos a imprensa, atiçávamos o governo... e eles nunca nos pegavam! Nunca me senti tão viva e útil. Foi incrível.

Em 1967, então, resolvem criar pseudônimos, para preservar nossa identidade. Eu escolhi o meu - Maria. Interprete minha escolha como quiser. Bem, durante uma das reuniões, eu o vejo novamente - o moço que estava aquele dia, no cinema. Seu pseudônimo era João, ironicamente. (Na verdade, só fui saber seu nome 4 anos depois). Ele era um dos membros mais antigos do MNR. Era realmente fantástico. Muito forte e confiante. Me apaixonei, é claro.

Mas também é claro que nada desse tipo de intimidade era permitido em nosso grupo. Tive de me conter um ano. Mas em 1968, eu soube que ele também me amava. Não podia ser a hora mais errada... Com a liberação do AI-5, tínhamos de tomar muito, mas MUITO cuidado em nossas passeatas - pois quaisquer atividades ou manifestações sobre assuntos políticos eram expressamente proibidas. Também não podíamos mais votar. E nossas casas foram escolhidas, nossa liberdade vigiada... Tivemos de renunciar de nossos nomes para vivermos decentemente - ainda que clandestinamente. Um absurdo eu ter de renunciar do meu nome, que me tornava um indivíduo, brasileiro, para conseguir morar em paz no meu país... Que vergonha. Que absurdo. Não fosse a passeata dos Cem Mil, em junho, eu teria abandonado o país.

(continua)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

1955

Ele se viu rodeado de tantas luzes, carros brilhantes, neons, saias rodadas e cinturas finas que quase se esqueceu do porquê de estar ali. Procurava um pouco de diversão, e assistir a um filme no velho cinema da cidade parecia uma boa idéia. Em meio àquela multidão de pessoas, se enfiou numa das filas da bilheteria e ouviu algumas senhoras falando do passado e cantando antigas marchinhas.

"Bota o retrato do velho, bota no mesmo lugar, o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar..."

A marchinha de 1950 ainda ecoava em sua cabeça. JK agora assumia o poder, e ele sentia que as coisas começariam a melhorar dali pra frente. Ele prometia criar uma nova capital do Brasil, prometia estabilidade econômica, prometeu progressos. Isso era o que ele queria ver, um Brasil andando somente pra frente, sem militares no comando. Sim... ele nasceu e cresceu vendo Getúlio criar ministérios e mais ministérios, mas mesmo assim, acabou exilado. Mas esse tal de JK parecia ser digno de confiança.

Apesar de sua tenra idade, ele se envolvia do tanto que conseguia e podia com questões políticas e econômicas. Não que ele achasse que pudesse fazer alguma coisa - mas seu sonho era iniciar uma revolução. Seu sonho era participar de um Movimento Nacionalista Revolucionário, usar codinomes, armar golpes contra o Estado... mas ele sabia que só haveria necessidade disso caso a situação no Brasil não estivesse lá das melhores. E apesar de ser um rebelde, ele com certeza tinha fé no futuro.

Rebelde... O que estava na moda agora era ser rebelde sem causa. Era ter sua juventude transviada. Era ter sua inocência corrompida por bebida, drogas e jaquetas de couro. "Não, obrigado", ele pensava. Seus amigos revoltados com a vida resolveram mudar de visual e investir em calças jeans justas, cigarro na boca e jaqueta de couro - e as meninas subiam seus cabelos cada vez mais. De jeito nenhum que ele aderiria àquela moda - ele tinha mais o que fazer.

Suas reflexões foram interrompidas por um suave toque no ombro, que o assustou um pouco.

- Moço, é a sua vez - disse uma voz de trás dele. Ele virou para trás, para encarar o dono ou dona daquela mão tão macia, e encontrou olhos grandes e amendoados, e um cabelo liso porém nada armado, que ia até a cintura. - Desculpe se o assustei, mas é sua vez - ela repetiu.
Então ele entendeu do que ela falava - era sua vez de comprar o ingresso do filme. Mecanicamente, comprou, se afastou da fila e se sentou em uma poltrona próxima à sala do filme ao qual ele ia assistir. Observou de novo a garota dos cabelos lisos escorridos. Notou que ela não usava vestido, e sim uma calça jeans que parecia um tanto velha, e uma camisa que a dava um ar de mais velha, apesar de seu rosto declarar ao mundo sua inocência e pouca idade.

A garota não comprou ingresso nenhum - ela tirou vários panfletos de sua bolsa e colocou numa bancada ao lado da bilheteria. Depois se dirigiu à porta do cinema, e começou a entregar panfletos às pessoas que a davam atenção.
- Pratique seu direito como cidadão. Exija do presidente suas promessas - e entregou um panfleto. - Olá, moça. Pratique seu direito como cidadã. Faça com que JK cumpra o que prometeu. Boa tarde, senhor, pratique seu direito como cidadão...

E assim foi, pessoa por pessoa. Ele poderia ter ficado ali observando-a a noite inteira, mas logo chegou a hora de o filme começar. Foi até a sala do filme, e se despediu da garota com um aceno de cabeça. Recebeu em troca um sorriso cheio de dentes, e se perguntou se eles se veriam de novo. Em 1968, quem sabe.

definição

Se quem se define se limita, então eu sou indefinida porém ilimitada?

domingo, 3 de janeiro de 2010

1968

- Você! Parada! Mãos para cima e joelhos no chão!
É simplesmente ÓBVIO que eu não obedeci ao policial. Meu grupo de revolucionários já havia lutado contra a polícia várias vezes... E essa é apenas mais uma vez... Nossas revoltas não estavam tendo muito sucesso, mas não podíamos ficar parados, sem fazer nada. Não podíamos sentar e assistir enquanto nosso país era dominado por militares e inflação. Não, isso era demais pro nosso orgulho!

Enfim, eu corria pelas ruas - as ruas que eu já conhecia muito bem, depois de tantas fugas - e procurei por algum rosto amigo que pudesse me mostrar uma saída, atalho o "passagem secreta" - que era como chamávamos esgotos e túneis subterrâneos - que me levasse ao meu exílio. Meu e dos meus companheiros. Mas não achei nada.

Virei uma esquina, segui reto, após saltar um muro ganhei uma boa distância do policial e consegui escapar. "Isso está ficando cada vez mais fácil", pensei comigo mesma, "mas devo começar a maneirar, já estou em muitos cartazes". Cheguei ao bar cujo dono era amigo meu. O bar era no térreo de um prédio cujo quarto andar era meu exílio.

- E aí Zé, muito movimento hoje? - eu pergunto ao meu amigo, o dono do bar.
- Nada! Com essa opressão toda pra esses lados, quase ninguém tem vindo aqui... Você e seu grupo um dia terão de pagar por todas as cervejas que eu não tenho vendido! - ele me respondeu. No fundo, eu sabia que ele estava brincando, e que apoiava qualquer tipo de ação/revolução tanto quanto eu. Respondi com uma piscadela, e subi as escadas até o quarto andar.

Abri a porta, e o vi. Ele era forte, íntegro, batalhava por uma mudança no sistema como nenhum de nós conseguia. Sempre sabia o que fazer, como agir, o que dizer, o que divulgar. Ele tinha tudo em suas mãos. Inclusive eu. Eu o amava. A segurança que ele transmitia, a confiança, mas principalmente os sonhos, me deixavam suspirando em meu quarto todas as noites. Mas é claro que eu não poderia dizer isso! Qualquer tipo de ligação entre os membros do MRN-03, do qual eu fazia parte, era expressamente proibido por ser perigoso para os membros.

- Maria? - ele me chamou pelo meu nome fictício ou pseudônimo.
- Diga, João. - João era, ironicamente, seu pseudônimo.

Ele se aproximou, e pude sentir seu olhar cair sobre meus ombros, que estavam machucados graças ao arame farpado pelo qual passei durante a fuga. Colocou sua mão direita em meu ombro direito. Uma mão firme, quente, segura. Me senti como se pudesse pegar sua mão e sair pra guerra, porque com ele, eu estaria segura. Uma lágrima brotou dos seus olhos, tirando-me do transe.

- Eu temo muito pela sua vida. Isso, em que estamos envolvidos, é tão perigoso... Sinto que você faria coisas grandiosas se esperasse tudo isso passar, e resolvesse trabalhar na imprensa ou num futuro governo. - Eu ouvi cada palavra. Sua voz de veludo, profunda, me deixava embriagada.
- Não se preocupe, João, eu sei me defender...
- Maria - ele me interrompeu -, se algo acontecer a você, eu nunca vou me perdoar.

Olhei pra ele com ternura e me perguntei se ele me amava como uma irmã mais nova ou como... amante.

Então eu soube.

Ele pegou minha mão, e me abraçou. E naquele momento, naquele milésimo de segundo, senti uma fagulha dentro de mim me dizendo que ele me amava. Que ele me amava com tanta ou mais intensidade do que eu. E que nós estávamos destinados a encarar juntos esse mundo, esse mundo tão frio, controlado e corrompido no qual nós vivemos... E eu também soube que a vida sempre seria uma aventura ao seu lado. E eu também soube que se eu morresse na próxima hora, dia, semana ou mês, eu morreria satisfeita de saber que eu encontrei meu amor verdadeiro antes de morrer.

Então ele me guiou até o sofá, ligou a TV, e começamos a assistir.

sábado, 2 de janeiro de 2010

O que poderia dar errado?

Eu simplesmente saí andando a esmo pela avenida, à espera de algo que eu sei que nunca poderia acontecer. Minhas esperanças se limitavam a desejar que eles voltassem... Pois não me restava mais nada no mundo. Eu só tinha a eles, e eles, a mim. Mas eles se foram. Minha vida se resumia a comer, beber, dormir, e passear por avenidas como esta, que me inspiravam um pouco de alegria... Ou o que eu achava ser alegria.

Era uma avenida bem movimentada... Sua continuação era uma estrada estadual, ou seja, o tráfego de carros era bem maior comparado com as outras avenidas da cidade. Obviamente, muitos acidentes aconteciam, por conseqüência de desamor à vida ou simples pressa. O fato é que as pessoas estavam tão concentradas em seus destinos, que não prestavam atenção ao caminho. Como se os fins justificassem os meios, quando eu achava o contrário.

Então eu me sentei num banco, num dos raros desocupados bancos daquela avenida, e olhei para o céu. Qualquer um enxergaria bonitos tons de azul, amarelo e nuances de branco no céu, mas não eu. Eu enxergava tudo em escala de cinza, pois nada mais tinha graça, depois da minha impossibilidade de ver os olhos verdes de minha mãe sorrindo para mim.

Foi quando eu os vi... uma família andando de mãos dadas, com roupas coloridas, sorrisos brilhantes, e mãos seguras e quentes. Eu queria, eu precisava me juntar a eles, me sentir parte de alguma coisa de novo, me sentir ali... Me levantei do bando, olhei para o céu, e, devagar, cheguei à sarjeta. Olhei para meus pés, a alguns centímetros acima da rua, e decidi tirar meus sapatos. O fiz. Um passo após o outro, fui andando em direção àquela família...

E encontrei a minha.