quinta-feira, 24 de outubro de 2013

o pequeno urso

Era uma vez um pequeno urso.

Nossa história começa com a cena de nosso pequeno urso saindo do bosque chamado Solidão.

Ele não sabia muito bem como havia parado naquele bosque - na verdade, desde que se entendia por urso ele havia morado lá. Talvez tivesse sido concebido lá. Não sabia ao certo. Mas agora não fazia diferença, porque ele decidiu sair de lá.
Como o nome pressupõe, era um lugar muito difícil de se sair. Muito escuro e confuso. Mas um dia ele olhou pra cima e viu o Sol. Depois viu a Lua. E passou a se guiar por essa luz. E conseguiu sair.

Andou por muitos lugares. Conheceu muitos campos a céu aberto, conheceu bosques menores, andou por muitos lugares bonitos, - mas agora guiado pelo seu instinto de aventura, não mais pela luz.

Um dia se cansou e parou num bosque qualquer, sem pretensão de ficar. Passou o dia, passou a noite. Acabou gostando do lugar. Era muito bonito - passava uma sensação de tranquilidade, havia comida, água em abundância e fazia tanto sol! Era aconchegante. Alguma coisa ali parecia certa. Enfim, havia encontrado um lugar em que se fixar. Enfim! Um lugar pra chamar de "casa".

Então, assim como fez para sair do bosque Solidão, o pequeno urso olhou pra cima. E lá estava o sol. Porém, agora ele não estava lá para guiá-lo para fora do lugar - ele estava ali mostrando que aquele era o lugar certo. E como aquele sol o fazia se sentir bem! Aquele calor, como ele nunca havia sentido antes - pois o bosque Solidão era frio, úmido, desconfortável. O sol reconfortava. O sol abraçava. Era tudo de que ele precisava - de um lugar bonito, que o pudesse sustentar. E ainda tinha esse sol!

Tudo estava indo bem. Até que, um dia, choveu.
O sol continuava lá, mas a chuva não parava. Nunca. Então por mais que o sol trouxesse calor e serenidade para o pequeno urso, a chuva o fazia sentir frio. O sol esquentava, mas não o suficiente para que a chuva não pudesse ser sentida; a chuva era gelada, mas não o suficiente para que o fizesse querer sair do sol. Ele não sabia o que fazer. Não queria se esconder do sol; era a primeira vez em tanto tempo - ou talvez fosse a primeira vez absoluta - que conseguia sentir esse calor de forma tão intensa. Mas a chuva... a chuva estava sempre lá. Às vezes mais fina; outras vezes, torrencial - mas ela marcava presença e não se deixava esquecer.

O pequeno urso sentia sua cabeça doer. Ele nunca antes tivera que tomar uma decisão assim.

Tentou um tempo ficar exposto ao sol - e à chuva. Mas era difícil... ele precisava de mais calor.
Tentou um tempo ficar dentro da água, para que a chuva não fizesse tanta diferença. Mas era difícil... fazia muito frio.
Tentou um tempo entrar no bosque e ficar protegido. Mas ele então sentia só a chuva, e não o sol. E ele definitivamente precisava de Sol.

Na busca por alternativas, o pequeno urso foi andando pelo bosque. Viu árvores com ninhos de pássaros, viu tocas embaixo da terra, viu cavernas. Mas nada parecia satisfazê-lo. Até que viu uma choupana abandonada.
Ele entrou lá. Lá dentro não entrava muita luz - mas não chovia. Lá dentro não era muito quente - mas também não era frio. Mas havia um pequeno detalhe, que fez o pequeno urso lá permanecer: havia uma janela. E essa janela permitia que nosso urso observasse lá fora. Ele podia ver a chuva caindo, ele podia ver o sol brilhando e continuava assim, indiretamente, sentindo seus efeitos. Mas com alguma proteção.

E, no final das contas, talvez isso realmente fosse melhor - acompanhar, de longe. Sentir, de longe. Pelo menos até que a chuva passasse. Afinal, o sol sempre estaria ali.

domingo, 13 de outubro de 2013

...blindness

Love is blindness.

Foi a primeira coisa que veio à mente dela quando abriu a janela do vigésimo quarto andar do hotel. Inspirou o ar gelado da cidade de concreto que, às onze da noite, começava a sentir despertar sua vida alternativa. Engraçado algo despertar na cidade enquanto algo morria dentro dela mesma.
Olhou ao redor, para dentro dos outros prédios. Cenas da vida cotidiana: um casal assistindo ao jornal, um jovem debruçado sobre uma mesa cheia de livros, uma criança sendo posta para dormir por um adulto, uma mulher passando roupa, outro casal brigando aos gritos, um rapaz debruçado na janela também contemplando a cidade. Uma rua os distanciava.
Quando seus olhares se encontraram, sentiu uma faísca de compreensão. Algo como "é, cara... é isso aí", aquela sensação de estar preso, tácito, nas alturas, quando o mundo está lá embaixo, em ebulição.
Mas, afinal, a vida não se resume a isso? A desencontros?

- É lindo, não acha?
- Acho.
Sorriem um para o outro, achando bonito tanto a cena quanto a situação de plena sintonia.
- Eu poderia passar minha vida aqui com você, Marina.


love is clockworks and cold steel
fingers too numb to feel
squeeze the handle, blow out the candle
...blindness.

Deu para si um sorriso tragicômico. Ela já estava velha demais para se comportar feito adolescente. Pessoas vêm e vão, repete para si. Mas o aprendizado fica.
Que aprendizado? Uma vida de cicatrizes é aprendizado? Se ela tivesse aprendido alguma coisa, qualquer coisa, com suas experiências, provavelmente já teria tomado um coquetel de cicuta, garçom, e não pare de servir.
Mas acontece que existe um pequeno vaga-lume dentro dela que continua piscando. Um vaga-lume que faz o favor de acender toda vez que acontece alguma coisa ruim. Um desgraçado de um vaga-lume que é a única coisa que dá pra ser vista no escuro. E ele se chama esperança.

- O que você tem?
- Não sei, Marina.
- Não vai falar comigo?
- Não.

a little death without mourning
no call and no warning
a dangerous idea
that almost makes sense

O rapaz do prédio agora bebia algo que parecia ser cerveja. Quão patético, não? Beber cerveja, fazendo contato visual com uma estranha, quase meia-noite, numa quarta-feira.
Ela pegou uma latinha e fez um brinde mentalmente.
Engraçado como ela sentia que aquele era um momento só deles. Podia haver uma cidade inteira em volta, mas, naquele minuto, só existiam eles, os dois blocos de concreto e a rua separando-os.
E as cervejas.
Eram companheiros de solidão. Porque a vida se resume a isso: desencontros.

- Como assim, cara? Uma semana atrás você dizia que me amava, agora isso?
- Não é assim, Marina. Você que veio com essa história de morar junto, e...
- Como, não é assim? O que você esperava que eu pensasse? Sentisse?
- Você viajou. Sério.

love is drowning in a deep well
all the secrets, and nobody else to tell
take the money, why don't you, honey
...blindness

Ele agora atendia um celular. Saiu da janela. A luz se apagou.
É, Marina, agora só sobrou você. Até o rapaz arrumou algo a fazer.
Que raio de sintonia era essa? Mas que mania de achar que você tem sintonia com todo mundo! Agora o pretendido companheiro de solidão mostrou que companhia tem limite. Porque afinal a vida se resumiu a isso: desencontros e abandonos.
Por que mesmo você foi até a janela, Marina?
Ah, é.

Um vôo de alguns segundos. Solitário. Uma vida de desencontros terminou num encontro com o asfalto duro da avenida Paulista.