terça-feira, 23 de agosto de 2011

discursos em javanês

- Pobre Bola-de-Neve. Pobre Goldstein. Pobre Jerônimo, pobre José, pobre Escobar. - Suspirou. - Tenho dó de vocês. Não por... vocês, mas por o que vocês representam. E vocês sempre acabam levando a pior.
Mais um suspiro.
Aquela noite especificamente estava com uma aura diferente. Podia ser efeito dos relaxantes, podia ser porque era a primeira noite de chuva em muitas semanas, podia ser porque acabara de ler livros e poemas e textos que a deixaram demasiadamente embriagada de pesar, mas aquela noite teve alguma coisa de diferente.
Tchaikovsky começou a tocar. 1812 Overture. Clássica representação de resistência. A trilha sonora perfeita, como já insinuou V, para uma revolução, mas que não necessariamente envolvesse uma explosão de um prédio público, pensou.
Começou a imaginar muitas cenas. Revoltas, cartazes, gritaria, hipertensão, tiros, tochas, tridentes, cachorros, todo tipo de armamento distribuído em muitas infantarias. Sim, seria fantástico conseguir mobilizar tamanha multidão para um propósito plausível. Todos lá, exercendo sua "liberdade de expressão", exigindo melhores condições e mudanças na atual situação, protestando contra a total pândega que o sistema se tornara, proclamando vergonha dos projetos sociais vigentes.
Obviamente; apenas algumas pessoas se encaixariam nas ações descritas no período anterior - seus líderes. A maioria estaria só repetindo axiomas, aproveitando o momento para gritar como animais no cio, gozando de um momento de liberdade e permissividade ao vandalismo - pois é tudo por um "bem maior" -, berrando a plenos pulmões frases repetitivas conjugadas no presente do indicativo e, falando a fria verdade, captando superficialmente ideias previamente mastigadas.
Seria um líder revolucionário apenas mais um político? Seria esse líder o professor de javanês de Lima Barreto? Seria esse líder apenas um político carismático com muita lábia e habilidade de nos mover com suas palavras melífluas? Seria ele apenas mais um manipulador qualquer, que pode não mentir, mas que omite os verdadeiros "porquês" e os verdadeiros "e depois"?
Suspirou. Mas essa manipulação por um discurso ideológico se faz necessária devido à grande indolência que assola a mente das pessoas quando se trata de ponderar-se a respeito de algo. Se uma mudança quer ser vista, uma atitude tem de ser tomada. Essa atitude, para ser maciça, precisa ter um estímulo. Esse estímulo vem de um discurso que foi feito para agradar e motivar as massas. E aqueles que detêm o conhecimento - agradar para motivar, agradar para ser seguido - são perigosos. O princípio de "pão e circo" é com certeza anterior ao Império Romano, ainda existe e continuará existindo na posterioridade.
No final, tudo fica nas mãos do melhor professor de javanês. E, como de costume, ao vencedor, as batatas.
AH, isso cansa! E a música chegava ao fim.
- Fazer o quê, Mikhail? Fazer o quê?
Olhou para a imagem do senhor barbudo e pomposo que brilhava na tela do seu computador.
- Por que vocês são sempre barbudos?, ela perguntou à imagem. Na ausência de resposta, desligou o monitor, fechou o livro e foi tomar um remédio para a enxaqueca que teimara o suficiente para conseguir voltar.

domingo, 21 de agosto de 2011

palavras

E quando a riqueza de palavras da língua portuguesa se extinguir e as coisas se resumirem a boas ou ruins? E um sentimento, terá de se encaixar entre "positivo" e "negativo", apenas? E quando aquela sensação de "não ter palavras pra descrever" se tornar real e literal? E se a tendência atual da simplificação de, em sua maioria, adjetivos, tomar proporções inimagináveis e a nossa língua começar a cada vez mais perder palavras?
Poderemos considerar por finado o trabalho de escritores e psicólogos. Rimas raras serão um conceito vazio, e a literatura se resumirá a textos que uma criança conseguiria escrever. Não haverá mais sentido tentar dar um nome para o que se sente porque esse nome não mais existirá. Chegar-se-á a um ponto em que as pessoas ficarão cada vez mais planificadas e previsíveis.
Portanto, eis meu apelo: não matem o português. Não transformem "pedaço" em "peda", "obrigada" em "obri" e "por favor" em "purfa". Não definam tudo como "top" ou "muito louco", e se perguntarem-lhe como você se sente, tente não responder como "ah, sei lá, sabe, tipo assim".
p.s. você é professor de gramática? não, né? então faça-me o favor de ir às favas com suas correções gramaticais.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

seus olhos

Um homem pálido, com várias tonalidades de olheiras, cabelos ainda úmidos, ombros tensos e os braços inertes sobre a mesa. Seu olhar vazio encarava a xícara de café a sua frente.
- Então? Você vai falar como fez, ou nós vamos ter de adivinhar e te dar uma pena muito maior do que você legalmente merece?, disse um homem de altura média, um pouco acima do peso, com o rosto muito vermelho e com uma veia no pescoço saltada, denunciando seu nervosismo.
A sala era pequena e claustrofóbica. Acho que isso pode explicar por que razões tantos segredos eram ditos ali: as paredes fazem uma pressão tão grande que você não aguenta e entrega o jogo.
- Sete tiros. Três na cabeça, três no peito, um no ventre. Três facadas. Duas no peito e uma no pulso direito. E ainda assim, nenhum sinal de estupro, diga-me, como você fez isso?
- Isso... o quê?
- Estuprá-la e não deixar rastros! Você tem pinto pequeno ou o que, cidadão?
- Eu... eu não a estuprei.
O delegado encarou-o com impaciência e frustração. Que velhaco! Que canalha! Estava ali, sentado, encarando sua xícara de café, sem nenhum sinal de remorso ou agitação!
- Então diga-me, colega. Por que tantos tiros e facadas?
- Ela... ela não sofreu. Eu a esfaqueei depois de tê-la posto para dormir.
O delegado fitou-o, incrédulo.
- Posto pra dormir?, e ele bateu com todas as suas forças na mesa. A sala inteira vibrou. Posto pra dormir?! A vítima era uma moça decente, nunca havia feito mal para ninguém, ela, entre muitos, merecia viver e continuar com seu bom trabalho! Você tira a chance da sociedade de aprender com uma pessoa admirável, e você a pôs pra dormir? Você tira uma noiva e uma mãe, e você a pôs para dormir?! Você a assassinou, brutalmente, e a estuprou! Você é um assassino, problemático, psicótico, mais por ter matado justo essa pessoa do que por ter de fato matado alguém!
O homem fechou os punhos com muita força. Fechou os olhos. Levantou a cabeça com calma e olhou fundo nos olhos do delegado, que estremeceu. Mesmo num olhar tão frio conseguia-se captar um relance de infantilidade e insegurança.
- Eu não a maculei. Eu... eu não faria isso com ela.
O delegado virou-se para a parede que continha um grande espelho e jogou os braços para cima, num sinal de rendição. Ouviu-se um barulho e ele saiu pela porta. O homem continuava com os punhos cerrados, completamente quieto. O delegado encontrou-se com os outros policiais, observando o homem através do espelho.
- Ele não vai falar mais nada, Roberto, o delegado disse, limpando a testa com um lenço.
- Eu já esperava isso. Roberto tinha sua testa franzida e segurava o queixo com a mão esquerda. Foi um crime passional, Carlos, assassinos desse tipo geralmente são ou já foram obcecados por suas vítimas; são completamente psicóticos, isso quando já não foram oficialmente diagnosticados com algum distúrbio...
Uma moça conservava-se quieta, no fundo da sala. Tirava, colocava e retirava a tampa de sua caneta. Tinha seus cabelos muito pretos presos em um rabo-de-cavalo baixo e visivelmente feito com pressa.
- Sabem; ela começou; eu dei uma olhada nas fotos da cena do crime e nos relatos de conhecidos desse homem e da vítima... E isso não me parece um crime passional qualquer. Quero dizer, parece que aconteceu todo um ritual. Vocês não percebem que os tiros e facadas foram em lugares previamente escolhidos e que provavelmente têm um significado? Por que outro motivo ele daria três tiros na cabeça, três no peito e apenas um no ventre? Pensem. Ela pode ter feito alguma escolha racional e emocional que o desagradou. Ou ela seguiu um caminho diferente do dele. E a facada no pulso direito, a vítima estava noiva, e o anel de noivado usa-se...
-... na mão direita; Roberto completou.
- Eu realmente acredito que ele não a estuprou, a obsessão dele por ela era provavelmente algo mais espiritual, mais platônico, algo até maternal, talvez? Pelo que eu li, ela era pediatra, e ele era seu faxineiro havia mais de cinco anos. O que a secretária disse foi que ele demitiu-se depois de encontrar a vítima tendo relações com o noivo no banheiro do consultório.
- E a vítima tinha quantos anos mesmo?
- Vinte e sete. Se formos pelo raciocínio de que o assassino projetou na vítima uma imagem de mãe, ele provavelmente decepcionou-se depois de vê-la com o noivo, pois isso sujaria a imagem que ele havia feito dela.
Ela parou de falar e observou as feições de Roberto e de Carlos. Ambos pareciam extremamente absortos em seus pensamentos. Ela mentalmente sorriu satisfeita por ter conseguido impressioná-los.
- Pode ser, Fernanda. Pode ser. Mas nós não podemos ficar só no "pode ser", temos de extrair a verdade do homem.
- Posso falar com ele? Sim?
Ela saiu da sala, entrou naquela claustrofóbica e sentou-se na frente de homem.
- Que coisa horrível pra se fazer, certo?
Ele encarou-a. Aquele quê de infantilidade estava ali de novo.
- Quero dizer, fazer aquelas coisas com o noivo no banheiro do consultório? Isso não é coisa que uma mãe devia fazer. E se as crianças vissem? Na verdade, ela não devia fazer aquele tipo de coisa de jeito nenhum. É repugnante.
- Ela me tratava muito bem, sabe. Elogiava o meu trabalho e sorria para mim.
Ele parou e fungou.
- Mas aí eu a vi fazendo... aquilo, sabe?! E aí pensei que se ela faz aquilo com o noivo, deve fazer com qualquer um. Eu vi que ela passou as mãos no cabelo do marido da mesma forma como ela passava as mãos nos cabelos das crianças, seus pacientes. E aí eu pensei que ela fosse que nem a minha mãe.
Fernanda olhava-o impressionada. Ela estava ouvindo muito mais do que esperava.
- E aí eu fiz o que eu tinha que fazer, né... quero dizer, ela mereceu, ela me decepcionou.
- E por que você não a estuprou?
- Porque quando é com uma mãe não é estupro, é amor. E não se mata alguém com amor.
- Sua mãe... sua mãe foi quem te disse isso?
- É, sim... Ela me amava muito.
Fernanda olhou para o espelho. Viu sua própria expressão; uma mistura de pena com repugnância. Saiu da sala claustrofóbica e voltou para aquela com os policiais.
Roberto estava com a mão esquerda no vidro e a mão direita no quadril, analisando o homem; Carlos limpava o suor da testa com o lenço.
- Não vai conseguir se livrar da cadeia, mas a pena provavelmente poderá ser reduzida se a defesa alegar insanidade mental, o que é claro que há nesse caso.
- Vamos encaminhá-lo para uma avaliação psicológica... e procurem registros que envolvam o nome da mãe dele... vamos ver se essa história é verdadeira.
Fernanda não estava realmente escutando, ainda encarava o homem. Tão perturbado, tão complexo! A escolha dos lugares para os tiros e facadas, se foi inconsciente, revela toda a sensibilidade daquele indivíduo. E se foi consciente, quão brilhante!
Balançou a cabeça, como se quisesse afastar aqueles pensamentos. O homem é um assassino. É perturbado, sim, mas é um assassino. Pode não merecer, mas precisa de ajuda, sim. A relação de Fernanda com assassinos passionais era bem instável.
Na semana seguinte, Fernanda ficou sabendo que dois dias antes do julgamento com o júri o homem se suicidou, intoxicado de monóxido de carbono. Foi encontrado deitado na posição fetal. Seus últimos registros em seu diário diziam que ele precisava ir dormir.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

cegueira

- O que é ver?
Por essa eu não esperava. Éramos amigos havia uns dois anos e foi a primeira vez que ele me perguntou isso.
- Quero dizer, como é? Dói?
- Não, não dói, Beto. Na verdade, você não sente nada.
- Como, não sente nada? Quando eu encosto em algo cortante, eu sinto dor. Quando você... vê algo ruim, você não sente dor?
Fiquei alguns segundos hesitante. Não é que ele tinha razão? Não é que ele sabia mais sobre a visão do que eu?
- Ah, Beto... sim, quando eu vejo algo triste eu fico triste, mas não é uma dor física, é uma dor, digamos, espiritual, moral, sabe? Essa dor, se ficar muito tempo dentro de você, pode virar uma dor física, mas num primeiro momento, ver não dói.
- Mas, Carol, já ouvi tanta gente dizer que preferiria ser cego do que ver todas as misérias que existem no nosso mundo. Como você explica isso?
- Existem várias formas de se ser cego. Uma das formas é a literal, literalmente não conseguir enxergar, mas outra, a mais comum, é uma epidemia crescente na nossa geração: as pessoas se recusam a enxergar a própria realidade, e simbolicamente fecham os olhos pra tudo, entende? Você tem mais visão do que metade das pessoas que eu conheço.
- Tá, mas agora eu quero saber como é, mesmo, sabe? O que são cores? O que é ser bonito?
Eu nunca me sentira tão privilegiada por enxergar antes na minha breve existência. Só de pensar em nunca ter visto um pôr-do-sol, um céu estrelado, um sorriso, uma lágrima, pássaros voando, o vento batendo nas árvores, as mudanças de expressão das pessoas...
- Você sabe muito bem o que é ser bonito, Beto.
- Mas é diferente.
- Exatamente! É diferente! E o seu conceito de beleza é muito acima do conceito de beleza das pessoas que enxergam, pois a partir do momento que se enxerga o rosto da pessoa, a roupa que ela usa, como ela anda ou as caras que faz enquanto fala, você já tem uma pré-ideia de como essa pessoa é, você a julga, entende? Quando não se enxerga, não há outra forma de conhecer a pessoa que não seja pela conversa, e por esta, sim, pode-se conhecer alguém de verdade e dizer se ela é bonita ou... feia.
Beto bufou. Ele não parecia satisfeito com minhas respostas. Acho que ele esperava coisas mais materiais e objetivas. A conversa estava sendo muito mais enriquecedora para mim do que para ele.
- Carol... eu sou bonito?
Olhei para ele. Seus olhos azuis extremamente claros encaravam o nada, o vazio, mas ele se curvava na minha direção e tinha seus joelhos apontados para mim.
- Claro que é, Beto! Você é uma das pessoas mais admiráveis que eu já conheci, sem falar...
- Não, Carol. Eu quero dizer bonito para quem enxerga.
Sim, muito bonito, inclusive. Sobrancelhas delineadas, grandes cílios, boca bem desenhada, cabelos castanhos sedosos, maxilar forte. Se ele soubesse o quão bonito é fisicamente não teria nem metade do caráter que tem. A grande tendência de hoje é de a beleza corromper imensamente as pessoas.
- Sim, Beto, mas você não devia se ligar a isso, sabe? Muitas meninas se aproximam de você só por causa da sua beleza, mas quando percebem que você é mais do que um rosto bonito e que você não liga para o quão loiras tunadas elas são, elas meio que se assustam. Sabe, Beto? Acho que a sua cegueira é um dos maiores presentes que você tem. Não só você, mas todos ao seu redor.
- Tá, Carol, mas só uma vez, só uma única vez, eu queria poder enxergar.
- Pra ver o que, Beto? Não há nada nesse mundo pra ver que você já não conheça de uma forma ou outra... claro, eu não abriria mão da minha visão, porque algumas imagens valem muito, mas não por serem imagens, mas por o que elas causam, entende? Eu acho incrível que você não precise ver o rosto de alguém pra saber como a pessoa está se sentindo, você entende?
- Mas conversa nenhuma vai me fazer ver o seu rosto.
Senti meu coração partir em dois. Quase deu pra escutar o som dos meus batimentos cardíacos acelerando. O rosto ingênuo de Beto denunciava que ele ainda não tinha captado o que eu senti ao ouvir aquela frase dele.
- Meu rosto?... por que razão você iria querer ver meu rosto, se você já viu tanto além dele?
Beto tateou pelos meus braços até colocar-se na posição certa e abraçou-me.
- Você é incrível, Carol, por que diz que sou seu único amigo?
- Ah, você não entenderia.
Enquanto me despedia dele, passei meus dedos pela profunda cicatriz que cortava meu rosto na diagonal. "Você não entenderia mesmo.".

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

sobre meu doppelgänger

Sabe aquela premissa de que se todos são especiais, ninguém o é?
Eu parti da premissa de que se há várias possibilidades de sentido para a minha vida e eu não consigo escolher é porque minha vida não tem sentido. Entendem? Eu enxergo tantas possibilidades, tantos futuros, tanto crescimento (tanto intelectual quanto humano) que me sinto intimidada por todas essas possíveis Brunas, muito melhores do que a Bruna atual, indecisa e irracionalmente infeliz.
Essa imagem de uma Bruna mais evoluída, mais sábia, mais culta, mais humana, mais tudo; essa imagem me assombra, como se fosse um doppelgänger que constantemente me segue e está comigo toda vez que devo fazer uma decisão. É como se eu me olhasse no espelho me visse em duas: o que eu sou, e essa imagem eu tendo a deturpar ao máximo possível, e esse doppelgänger, essa assombração (porque é isso que essa imagem faz: me assombra! em vez de me animar, me põe pra baixo; em vez de eu ficar feliz com todas as minhas possibilidades, eu me deixo deprimir por ter medo de fazer a decisão não errada, mas a menos certa).
E, tendo em vista a minha nova filosofia prática de tentar incorporar a essência do espírito de Poliana, tentei olhar as coisas de um outro ângulo. Eu posso não ter decidido o que eu quero fazer ou qual das inúmeras possibilidades eu vou seguir, mas isso não esvazia minha vida de sentido - na verdade, o meu objetivo de vida é justamente escolher qual sentido minha vida terá. Pois eu não acredito que a vida tenha apenas um sentido, eu acho que esse sentido muda de acordo com seu momento e suas vontades, por isso, a minha maior aspiração agora é descobrir o que eu posso fazer de melhor e como eu posso me tornar útil para alguém ou para o mundo.

[Um sentido para a vida não precisa ser algo grande, algo macro. Não é porque a pessoa não é aspirante a revolucionária que ela é corroída pelo vazio de sentido. A incredulidade no próprio sentido também não tira o sentido das coisas: o niilista pode achar que suas ações são desprovidas de um sentido, mas as pessoas ao seu redor podem discordar. O logos se encontra também em ações pequenas, como em fazer o bem ao próximo, pois quando você o faz, se sente bem com você e sente que fez sua parte. O sentido pode se encontrar em dedicar-se a uma causa, ou mesmo dedicar-se a alguém - à pessoa amada, à família, ou a você mesmo.]

Toda essa epifania teve muitos agravantes e catalizadores, e após uma pseudo-reclusão (sim, pseudo, pois a minha ideia de reclusão é ficar dias sem falar com ninguém para garantir que sua linha de raciocínio não será interrompida, mas como isso não é possível no momento, tentei fazer o máximo possível), decidi olhar as coisas do alto da montanha e apagar a infelicidade e miserabilidade que estava contida dentro de problemas muito pequenos e insignificantes comparados com os problemas que existem no mundo - um mundo muito mais real do que o meu, uma burguesinha de classe média alta metida a besta.

Meu objetivo agora é tentar ser a melhor versão possível do que eu sou; aprimorar meu ser; lapidar meu ente; aprender a fazer boas decisões e não me deixar derrubar por questões demasiadamente racionais pois, cá entre nós, o ser humano não é tão racional quanto julga ser.
E em vez de me deixar deprimir pela constante imagem da doppelgänger que me invade, vou emoldurá-la e pendurá-la na minha parede de possibilidades.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

miserabilidade

Não sou egoísta, não acho que sou deus, não sou prepotente nem me acho onipotente, mas às vezes você chega a um ponto que se pergunta o que você está fazendo aqui, agora.
É, não é? Sabe, você venceu a corrida, passou na frente de outros bilhões de metades de pessoas. Entende isso? Se outro espermatozoide tivesse passando na sua frente, ele poderia estar aqui sendo mais útil do que você. Ele poderia estar vivendo menos miseravelmente. Ele poderia ser o cara que viria a descobrir a cura do câncer, quem sabe? Todos nós deveríamos estar honrando a memória de todos esses projetos de pessoas dos quais tiramos a chance de existir.
E ainda assim, você vive a sua vida miserável, dia após dia, refeição após refeição. Você não tenta ser o melhor que pode, não tenta aprimorar suas habilidades e seu intelecto, não lapida o seu ente, você simplesmente ignora a possibilidade de que outra pessoa, no seu lugar, poderia estar fazendo coisas maiores, fantásticas! Mas ah! isso não te impede de apenas ser. Claro, não é? às vezes a bebedeira nos afeta, já dizia Drummond que essa lua, esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo, e vez ou outra temos aquela crise, aquele momento de consciência, aquela epifania momentânea e evanescente: sou eu quem estou aqui. Será que estou aproveitando ao máximo?
Mas enquanto alguns realmente pensam a respeito de dar algum valor, algum sentido à sua vida, alguns, como eu, sua miserável narradora, decidem que não há valor nem sentido em suas vidas. Alguns, como eu, chegam forçosamente à terrível conclusão de que qualquer um estaria fazendo melhor proveito do que se tem, em quaisquer condições, com quaisquer obstáculos. Triste, não? Desanimador. Claro que não pra mim, eu me conformei com essa ideia há tempos, e isso sim é o triste. Eu não deveria ter me conformado! Eu deveria ter tentado transformar essa realidade! Mas depois de travar tantas batalhas, contra mim e contra o mundo, depois de tantos ferimentos de guerra, você meio que desiste por exaustão, sabe? Depois de você tentar provar (ou iludir a?) você mesmo que sua vida tem sim um objetivo ou um sentido, vem o mundo e desprova, ou te dá motivos pra desistir, ou te faz sentir a pessoa mais fraca do mundo.
E nossa! acho que existem poucos sentimentos piores do que o vazio de sentido. Pois o vazio de sentido engloba muitos dos piores sentimentos, como o tédio, e, especialmente, o tédio dominical. Pois, sabe, a maioria dos problemas você consegue resolver com muita introspecção e batalha, porque muitos são essencialmente internos, mas o vazio existencial vem também de fora, vem do sentimento de inutilidade que é inexoravelmente produto da sua situação com sua reação a tal, e olha, é um negócio complicado de se resolver. Dá-me preguiça, muita preguiça. Dá-me medo de, no final das contas, não encontrar nada, e simplesmente descobrir (ou redescobrir, ou reafirmar) que, realmente, olha, esse negócio de uma vida com um sentido não é pra ti, não, amiga.
E olhar ao redor não podia ser mais doloroso, ver que todos têm suas ambições, ver seus personagens favoritos sucedendo no que queriam, ver quem não tinha mérito conseguir conquistar seus objetivos e você ali, observando as ondas irem e voltarem, numa estaticidade que enlouqueceria até os mais sedentários, mas que é tudo que você pode fazer!
Você não é especial. Você não é especial, você não é especial. Por mais que o capitalismo queira enfiar essas abobrinhas na sua cabeça, não se esqueça: você - não é - especial.
Doloroso, não? Essa é a fonte da minha miserabilidade. Mas fazer o quê?