quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

a moça

Quanto mais ele chegava perto, mais audíveis os sussurros da pessoa ficavam. Eduardo ajoelhou-se ao lado da figura e esperou por uma reação.
Nada.
Mas antes de ele abrir a boca para falar algo, a figura pronunciou-se.
- Não é obvio que eu estou rezando? - e da figura encapuzada saiu uma feminina voz, muito doce, mas com alguns indícios de melancolia. Disse isso sem virar o rosto, sem sair de sua posição oratória.
- Por que está rezando?
- Não por que, mas por quem. - a voz saiu quase que como um sussurro. - Estou rezando por você.
Eduardo assustou-se. Como, por mim?, ele pensou, se eu nunca a vi na vida?
- Estou pedindo que Deus lhe perdoe. - a moça disse. Eduardo não entendeu. Não era religioso, não acreditava em nada além dele mesmo.
- Não preciso que ninguém interceda por mim, moça.
- Certo. - Ela se levantou e, sem que Eduardo pudesse ver seu rosto, virou-se e saiu andando. A única coisa que podia se dizer acerca de sua aparência física era a respeito de sua altura, pois ela usava uma capa de lã muito grossa que se estendia até o chão. Incomum. Não é de se admirar que esse repentino acontecimento tenha despertado tanta curiosidade em Eduardo. Há muito tempo ele esperava por alguma coisa que tirasse sua vida do total e completo tédio. Então seguiu a moça.
A única parte de seu corpo que Eduardo pôde ver até então foi seu braço direito - quando a moça estendeu-o para abrir a porta da igreja, Eduardo notou que ela possuía uma cicatriz em forma de cruz no antebraço. Olhou para o seu próprio. Ele tinha uma cicatriz idêntica. Isso sempre esteve aqui?, ele pensou.
Os momentos seguintes ficaram memorizados de forma muito confusa na mente de Eduardo; uma série de acontecimentos não passam de borrões; até que ele se encontrou deitado num banco na entrada de uma taverna. E, surpreendentemente - ou não -, encontrava-se ao seu lado a tal moça da cicatriz de cruz. Desta vez, metade de seu rosto estava visível. Não era magro, era de um formato deveras masculino, a boca estava machucada e ela tinha um hálito de absinto.
- Você me encontrou porque sua vida estava um tédio, ou estou enganada? - Eduardo consentiu. Estava ainda um pouco tonto. - Serei a tua fonte de absolvição. Deverá escutar-me e responder sinceramente às minhas perguntas. Agora recomponha-se, que nosso lugar não é aqui.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

a igreja

Começa o filme. Imagens de um rapaz de trinta e poucos anos, com maxilar bem quadrado e cabelos castanhos perfeitamente repartidos ao meio.
Eduardo era o tipíco amante do sucesso. Boa-pinta, charmoso, sedutor, carismático, tinha uma lábia que vou te contar. Exatamente por isso era sempre o funcionário do mês na empresa em que trabalhava. Emprego irritante aquele. Eduardo era encarregado de convencer as pessoas a comprarem todos aqueles aparelhos inúteis e multifuncionais - às vezes só pelo telefone. E era o mais bem sucedido vendedor dos últimos vinte e cinco anos, segundo aquela revista de circulação federal.
Era o cara que pede licença mas não pede desculpa se pisar no seu pé. Que não mente, mas omite muita coisa. Que te faz um favor se você já tiver feito-lhe muitos. Que consegue driblar até o jornalista mais crítico e competente de sua área. Quase um Collor. Realmente adorável. Tipinho imprestável e muito conhecido, mas que sempre cai nas graças do povo, certo?
Ele também era relativamente jovem, quando considerando seu tremendo sucesso profissional. Estava noivo de uma apresentadora de um talk-show, típica loura de olhos azuis e corpo lipoesculturado, e já tinham um filho de 4 anos - muito inteligente, muito bonito, menino prodígio da música e do desenho! Que vida perfeita.
Pausa.

Eduardo estava sentado na poltrona vermelho-sangue de sua sala. A única fonte de luz era uma luminária muito fraca, no canto da sala. O ambiente era gélido, mas ele estava completamente confortável, com uma taça de vinho na mão. Deu um último gole e descansou a taça sobre a mesa de centro. Recostou-se na poltrona e cruzou as pernas, enquanto tamborilava seus dedos nos braços dessa. Suspirou.
Levantou-se. Ia dar uma volta. Saiu de seu apartamento - no vigésimo sétimo andar do prédio localizado na área mais rica da cidade. Já estava bem escuro, aparentava ser mais de meia-noite, mas Eduardo não tinha assim tanta certeza. Saiu em busca de prazer, diversão, entretenimento.
Andando na rua vazia, pouco iluminada e de atmosfera úmida, ele finalmente sentiu-se à vontade. Afrouxou a gravata e deu um gole na garrafa de vinho tinto que trouxera consigo. Foi andando com passos largos e lentos até deter-se avistando uma igreja gótica. Mal iluminada, muito alta, vitrais que, à noite, davam a impressão de ter ilustrações do inferno. Eduardo sorriu.
Resolveu entrar na igreja. Não fez o costumeiro sinal-da-cruz ao entrar, não tinha religião nenhuma, ele era seu próprio deus. Foi andando tranquila e distraidamente por lá, mas parou ao ver uma imagem de capuz ajoelhada ao altar. Foi a seu encontro.

(continua)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

o despertar

Trilha sonora: Clair de Lune - Claude Debussy

Foi abrindo os olhos lentamente. Queria aproveitar o sentimento único de transição entre o mundo dos sonhos e o real. Enquanto a imagem se focava, sentiu a brisa gelada acariciando as maçãs de seu rosto. Sorriu. Estava tudo perfeito. Sentou-se na cama, olhou para sua direita - uma janela aberta por onde a brisa entrava -, olhou para sua esquerda - onde um anjo dormia tranquilamente -, olhou para frente - onde encontrava-se uma bandeja de café da manhã com direito a morangos e torradas.
Olhou através da janela. Não poderia existir paisagem mais bonita. Por alguns instantes, compreendeu toda a ideologia árcade e deixou-se entregar pelo sentimento bucolista que a envolvia. Entendeu o que é uma natureza em harmonia. Entendeu o significado de fugere urbem. Era outono, época das cores mais bonitas do ano. Folhas em tons de marrom, laranja, vermelho, alguns verdes e amarelos. As flores que ainda restavam tinham cores contrastantes com a paisagem; aquela cena, aquele instante perfeito do sol surgindo por entre as árvores daria uma fotografia maravilhosa.
Olhou para o anjo que dormia ao seu lado. Não poderia estar com o semblante mais sereno. Uma ótima noite de sono depois de um amor ardente tinha como consequência um dia tranquilo e perfeito, fora o bom-humor característico. Recém casados. Recém realizados. Sonhos e sonhos pairavam em sua mente. Mas queria focar-se no presente, não queria esquecer-se nunca daquela primeira manhã de sua (tão ansiada) lua-de-mel. Beijou-lhe o rosto e, cuidadosamente, foi em direção à bandeja de café da manhã.
Sentiu o ar gélido da manhã de Quebéc roçar-lhe a nuca. Lembrou-se de colocar o roupão. Aquela paz. Aqueles morangos tão grandes e vermelhos, o chá quente e acolhedor - riu-se fazendo a comparação do chá com o corpo do recém marido. Inclinou a cabeça para o lado. Sim, estava muito feliz. E não havia passado nem um quarto de hora desde que levantou.

Isto, sim, é carpe diem.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

carpe diem?

Acho que o conceito de hoje sobre "aproveitar a vida" está um pouco equivocada. O uso da famosa frase "Carpe Diem" é extremamente errôneo. Focam-se no conceito "viva como se todo dia fosse seu último". Nessa frase não estão incluídos nem atos inconsequentes nem ter sua juventude transviada. Explico. Carpe Diem. Aproveite o momento. Realmente dá abertura para muitas interpretações.
Essa frase é a desculpa pseudo-filosófica de pessoas, de uma forma geral, que querem agir impulsivamente e estupidamente, e que muitas vezes não sabem da ideologia, mas se aproveitam da imagem consumista e materialista que cresceu em torno da frase. Aproveitar tudo ao máximo. Não ligar para seu futuro. Não ligar para as consequências. Não ligar para as repercussões, sejam elas uma ressaca ou uma reputação estragada. Embriagar-se e inebriar-se. Experimentar da essência de muitas pessoas diferentes. E deixar o estudo para a prova para o dia seguinte do dia seguinte. Essa é a imagem muitas vezes difundida pela mídia. Esse realmente é o significado de Carpe Diem?

"[...] sapias, vina liques et spatio brevi spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida aetas: carpe diem quam minimum credula postero."
("[...]sê sábia, filtra o vinho e encurta a esperança, pois a vida é breve. Enquanto falamos, terá fugido ávido o tempo: Colhe o instante, sem confiar no amanhã.")

Colher o instante. Isso nos dá a ideia de colher frutos. O que poderiam ser esses frutos? Oportunidades, por exemplo. O trecho nos fala sobre como o tempo passa rápido e que não volta. O que eu considero que sejam essas oportunidades? Encontrar alguém, experimentar algo novo, plantar a semente de algo que no futuro poderá dar frutos muito benéficos e frutíferos. O sentido de "viva como se fosse seu último dia" que está presente nessa frase significa deixar sua vida pronta e em ordem, sem pendências, para que, quando o dia de sua partida chegar, não existam arrependimentos ou atrasos.
O único conflito que a interpretação da frase pode gerar é: e os arrependimentos? É melhor arrepender-se de não ter feito ou arrepender-se de ter feito? Na minha opinião, quando uma porta se fecha, a outra abre; acho que para todas as más decisões feitas abrirão-se portas para consertá-las; e sempre que não aproveitamos uma oportunidade nos será oferecida outra. O problema é que nem sempre temos os olhos abertos o suficiente para reconhecer o que é uma oportunidade, de fato.
E não acho que tudo isso que escrevi significa uma limitação para a vivência da juventude. Faz parte ir a festas, voltar bêbado pra casa, viajar com os amigos, experimentar coisas, mas tudo de uma forma saudável.

Típico discurso de mãe, certo? Mas todo mundo sabe que quando a mãe fala que vai dar merda, dá merda.