quinta-feira, 30 de junho de 2011

Victor

- Victor?, Luana perguntou, avançando a passos largos e lentos na direção do homem.
- Isso não importa, sim?, foi-lhe a resposta.
- Meu querido; ia dizendo com um sorriso malicioso; eu preciso saber que nome gritar.
O homem parecia não estar ouvindo, ocupava-se em examinar o corpo de Luana enquanto afrouxava a gravata e abria os botões da manga da camisa.
Aquele quarto. Era bem aconchegante e arrumado quando considerada sua função. Uma cama grande e com roupas de cama muito bonitas, cortinas luxuosas, uma grande janela com uma vista muito bonita apesar de ser só do primeiro andar e um espelho grande e bonito.
Sim, um espelho. E esse especialmente não era no teto - era um espelho pequeno, daqueles que só refletem seu busto, e ficava ao lado da janela. Qual o propósito daquilo?
Quartos como esses não deviam ter espelhos. As moças que por ali passam têm sentimentos confusos e deturpações de mais em sua personalidades para conseguirem aproveitar do prazer de olhar-se no espelho e sorrir ao ver sua própria imagem. Os homens que por ali passavam também abaixavam o olhar ao observarem a expressão fria e vazia do reflexo encarando-os. Resumindo, um lugar como aquele exigia uma venda para os olhos, não um objeto que induz a reflexões acerca de sua existência.
Luana sentou-se na cama e indicou com os olhos para o homem segui-la.
- Não, eu não quero sexo, disse Victor. Só quero fumar e olhar livremente para uma mulher. Sabe, não posso fumar dentro de casa e minha esposa me sufoca com tanta insegurança.
Afrouxou novamente a gravata. Acendeu um cigarro, aproximou-se dela e soltou a fumaça em seu rosto. Uma expressão sarcástica e um tanto surpresa espalhou-se pelos olhos de Victor.
- Você parece decepcionada.
- Você parece louco. Ainda vai me pagar, certo?
- Sim, madame. Como quiseres.
Apesar de ter pronunciado as palavras "louco" e "pagar" com sua característica firmeza, Luana não parecia convicta de como deveria se comportar naquela situação. Mais fácil lidar com homens neandertais e sedentos por sexo do que um que, de tão perdido, precisou procurar uma prostituta para sentir-se mais... ele mesmo. O que aquilo queria dizer? Ele não precisou ceder a seus "instintos" para livrar-se da abstinência e da claustrofobia causada pela esposa. Isso mexeu com nossa protagonista.
- Você está casado há quanto tempo?
- Dez anos. Sempre fui feliz e fiel. Acho que por isso ela começou a me sufocar de insegurança. Mulheres não gostam quando tudo está perfeito, sim? Elas têm de arrumar algum problema para a situação parecer mais real, como se desgraça fosse um sintoma da realidade. Victor riu e apagou o cigarro no dorso da mão. Luana cobriu-se com seu robe de seda cor-de-vinho pois sentiu vergonha de sua natureza ao encarar Victor. Ele parecia tão triste, e conformado, e adestrado, e ainda assim, encontrava formas razoavelmente saudáveis para liberar suas angústias.
- Então, isso é o que você faz da vida?
-... desculpe-me?
- Isso mesmo. Você é só prostituta ou isso é um tipo de segunda vida?
- Não é uma segunda vida, porque uma segunda vida significa que há uma outra vida, vivida pela mesma pessoa, e o que acontece comigo não é isso.
Victor parecia intrigado.
- O que é, então?
- Eu vivo uma vida só, e a outra parte de mim vive outra. Não tenho lembranças racionais nem sensitivas, só sei que, em certo momento, o meu eu de agora se desliga.
- E você sempre foi assim?
- Eu não lembro.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

the highest of all duties

The aim of life is self-development. To realise one's nature perfectly - that is what each of us is here for. People are afraid of themselves, nowadays. They have forgotten the highest of all duties, the duty that one owes to one's self.

Luana apreciava a perfeição de suas unhas quando ouviu o despertador. Um despertador, sim, um som inconfundível que despertaria de dentro dela a primitiva e inconsequente Luana. Despediu-se da literatura, despediu-se da água gaseificada, despediu-se de seu respeitável eu e encarnou seu próprio eu-satírico, seu alter-ego, sua outra face. Como esse processo se dá é desconhecido, o que realmente acontece com a mente e as percepções de Luana ainda é debatido.
Levantou-se do sofá e foi tomar um banho de banheira. Preparou o banho com pretensão e calma, com sais aromáticos e água bem quente. Mergulhou-se na água e concentrava-se enquanto inalava odores salpicantes e ardentes. Fechava e abria os olhos lentamente, relaxava os ombros e massageava seus pés. Tudo devia levar, inexoravelmente, a uma noite produtiva.
Enfim, pulando os pormenores das arrumação e saída, mas não omitindo o fato de ter consumido uma garrafa de vinho branco inteira antes de sair, o próximo lugar em que se encontrou foi numa casa aparentemente normal, mas vermelha por dentro. Vermelha de erotismo, de falta de saída, de desespero, de gritos, de volúpia. Algumas moças, demasiadamente jovens, reuniam-se numa sala improvisada no porão. Toda a claustrofobia da vida que essas moças levavam condensava-se nas peculiaridades da sala e das palavras que ali ficavam.
Após cumprimentar algumas colegas, checou sua agenda - sim, uma agenda, com horários tão disputados quanto os de um renomado psicólogo ou de um extraordiário personal trainer - e reconheceu o sobrenome de seu primeiro freguês, não sabia de onde, mas uma voz ecoou pela sua mente dizendo que aquilo já havia sido visto uma vez ou outra em sua vida. Foda-se. Essa informação não ajudaria em nada no seu desempenho com aquele espécime. Informações e conhecimento não têm valor nenhum para alguém pragmático e pouco essencial como Luana - forma tão mais fácil de se levar a vida, não? Pensar dá rugas. Beauty, real Beauty, ends when an intellectual expression begins. E o que é viver se não apreciar a beleza da vida?
Estralou o pescoço para um lado, depois para o outro. Andou com passos sorrateiros até o escritório, onde encontrou o dito cujo. Parecia ter em torno de quarenta e cinco anos, não usava aliança, estava ainda de terno e possuía algumas rugas que denunciavam seu caráter questionador. Sim, ela já havia visto esse rosto. Mas esse sentimento não era, ou não parecia ser, recíproco. Mas enfim, um rosto é só um rosto, um orgasmo é só um orgasmo e os lençóis de hoje serão trocados amanhã.

Realmente, um dos muitos sistemas de defesa conhecidos e usados pelas pessoas é o esquecimento, a abstração, a negação. Luana não tinha plena consciência disso ainda, mas uma parte de seu eu, de suas características, de suas vontades, tinha sido tão reprimida que, ao vir à tona, para não causar maiores enfermidades à outra parte, aprendeu a guardar suas vivências em uma área à parte em sua mente. Sendo tão paradoxal, tão complexa, e não tendo aprendido a lidar com todo seu conteúdo, Luana seguiu pelo caminho mais fácil. E perdeu-se-lhe a riqueza de ser.

(ainda continua. calma.)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

impulsos

Um feixe de luz entrando através da cortina de camurça e vermelho-sangue e pousando numa pele macia e rosada. Um ambiente fétido, repugnante, medíocre, em oposição a delicadas mãos. Um homem indo embora deixando dinheiro dentro dos sapatos da moça, em oposição à ternura e inocência com que ela se encontrava encolhida em posição fetal na cama. Essa era Luana.
Franziu as sobrancelhas ao perceber que já era dia. Levantou-se preguiçosa e relutantemente, em movimentos lentos e calmos, até que - oito e meia? - já? - vestiu-se - penteou-se - onde está o dinheiro? - ele deve ter pago a diária - saiu e deixou aquele lugar para trás.
Sim, finalmente, chegou a sua casa. Foi direto para o chuveiro, limpou-se de toda a sujeira da noite passada - limpou-se a consciência - limpou-se das memórias, dos sentimentos, da selvageria, do caráter animal e impulsivo - limpou-se da mágoa e do remorso de ser tão paradoxal, primitiva e sem auto-controle - pois era um novo dia e sempre há muito trabalho para ser feito na escola em que trabalhava.
Um tipo diferente de escola, em que as crianças de 4 a 8 anos têm aulas juntas, fora as de matemática e ciências. Esse compartilhamento de experiências e aprendizado era muito rico, e Luana adorava seu trabalho. Às vezes iniciava reflexões e guiava as crianças por uma linha de pensamento, outras vezes dava aula de música, e de tempos em tempos reunia-se com as outras três ou quatro professoras para discutirem o processo, os métodos e os progressos feitos.

O tema das aulas ao decorrer da semana seria sobre controle de seus instintos e noção de público e privado.

É sempre muito difícil explicar para crianças o porquê de certas convenções e coerções. A criança, tendo uma personalidade e um quê primitivo dentro de si, não entende facilmente por que razão certas coisas são públicas e outras são privadas, ou ainda por que deve-se controlar certos impulsos e instintos.

- O que diferencia nós, pessoas, seres humanos, dos macacos e outros animais, além de nossa aparência?, Luana perguntou.
- Macacos têm uma família só muito grande!
- É, os animais estão sempre em bandos, muito grandes.
- Eles não vivem em casas que nem a gente.
- Eles não sabem ler nem escrever. Nem desenhar!
- Então nós, de certa forma, somos mais evoluídos que os macacos, certo?, Luana perguntou. E o que mais? Onde os macacos fazem o número 1 e o número 2?
- Em qualquer lugar!
- E onde eles têm filhos? Um macaco casa-se com uma macaca para sempre e eles têm apenas alguns filhos, ou não?
- Eu outro dia vi na televisão que não existe isso de casar entre os macacos. Um macaco pode ficar com várias macacas ao mesmo tempo.
- Isso tudo, crianças, nos diferencia dos animais. Nós temos controle de nossos impulsos e instintos. Nós sabemos que não podemos simplesmente abaixar as calças e fazer o número 2 na rua, certo? Sabemos que existem certas regras e que devemos respeitar essas regras de convivência. Cada vez mais, quanto mais envelhecemos, nos damos conta de que nós somos donos de nossas vontades e impulsos, e que não devemos nos deixar dominar por eles. Vocês estão acompanhando?
- Um dia ouvi minha mãe dizer pra uma amiga dela que meu pai não sabia controlar seus impulsos sexuais e que por isso eles estavam se separando, porque ele precisava ficar com outras mulheres, que nem o macaco precisa ficar com outras macacas. E ele é velho, professora.
Luana procurou não voltar suas atenções para tal comentário. Desconversou e logo o sinal bateu. As crianças foram todas embora, mas Luana ficou ali, sentada na sala, observando o círculo no chão em que as crianças sentavam na hora das reflexões. Ela lembrava-se claramente da noite passada. Lembrava-se nítida e racionalmente de tudo o que fizera, mas algo a impedia de digerir tudo aquilo, de processar, de sentir novamente o que era estar naquele lugar. Um bloqueio, uma trava de emoções ligava-se toda vez que Luana saía à noite, de forma que a Luana da noite era diferente não comunicava-se com a de dia. Uma forma de defesa, talvez?, pois sem os dois lados da história não era possível refletir-se a respeito, então ambas Luanas seguiriam com sua forma de vida sem culpa ou consciência de suas falhas de caráter.

(continua)