segunda-feira, 6 de junho de 2011

impulsos

Um feixe de luz entrando através da cortina de camurça e vermelho-sangue e pousando numa pele macia e rosada. Um ambiente fétido, repugnante, medíocre, em oposição a delicadas mãos. Um homem indo embora deixando dinheiro dentro dos sapatos da moça, em oposição à ternura e inocência com que ela se encontrava encolhida em posição fetal na cama. Essa era Luana.
Franziu as sobrancelhas ao perceber que já era dia. Levantou-se preguiçosa e relutantemente, em movimentos lentos e calmos, até que - oito e meia? - já? - vestiu-se - penteou-se - onde está o dinheiro? - ele deve ter pago a diária - saiu e deixou aquele lugar para trás.
Sim, finalmente, chegou a sua casa. Foi direto para o chuveiro, limpou-se de toda a sujeira da noite passada - limpou-se a consciência - limpou-se das memórias, dos sentimentos, da selvageria, do caráter animal e impulsivo - limpou-se da mágoa e do remorso de ser tão paradoxal, primitiva e sem auto-controle - pois era um novo dia e sempre há muito trabalho para ser feito na escola em que trabalhava.
Um tipo diferente de escola, em que as crianças de 4 a 8 anos têm aulas juntas, fora as de matemática e ciências. Esse compartilhamento de experiências e aprendizado era muito rico, e Luana adorava seu trabalho. Às vezes iniciava reflexões e guiava as crianças por uma linha de pensamento, outras vezes dava aula de música, e de tempos em tempos reunia-se com as outras três ou quatro professoras para discutirem o processo, os métodos e os progressos feitos.

O tema das aulas ao decorrer da semana seria sobre controle de seus instintos e noção de público e privado.

É sempre muito difícil explicar para crianças o porquê de certas convenções e coerções. A criança, tendo uma personalidade e um quê primitivo dentro de si, não entende facilmente por que razão certas coisas são públicas e outras são privadas, ou ainda por que deve-se controlar certos impulsos e instintos.

- O que diferencia nós, pessoas, seres humanos, dos macacos e outros animais, além de nossa aparência?, Luana perguntou.
- Macacos têm uma família só muito grande!
- É, os animais estão sempre em bandos, muito grandes.
- Eles não vivem em casas que nem a gente.
- Eles não sabem ler nem escrever. Nem desenhar!
- Então nós, de certa forma, somos mais evoluídos que os macacos, certo?, Luana perguntou. E o que mais? Onde os macacos fazem o número 1 e o número 2?
- Em qualquer lugar!
- E onde eles têm filhos? Um macaco casa-se com uma macaca para sempre e eles têm apenas alguns filhos, ou não?
- Eu outro dia vi na televisão que não existe isso de casar entre os macacos. Um macaco pode ficar com várias macacas ao mesmo tempo.
- Isso tudo, crianças, nos diferencia dos animais. Nós temos controle de nossos impulsos e instintos. Nós sabemos que não podemos simplesmente abaixar as calças e fazer o número 2 na rua, certo? Sabemos que existem certas regras e que devemos respeitar essas regras de convivência. Cada vez mais, quanto mais envelhecemos, nos damos conta de que nós somos donos de nossas vontades e impulsos, e que não devemos nos deixar dominar por eles. Vocês estão acompanhando?
- Um dia ouvi minha mãe dizer pra uma amiga dela que meu pai não sabia controlar seus impulsos sexuais e que por isso eles estavam se separando, porque ele precisava ficar com outras mulheres, que nem o macaco precisa ficar com outras macacas. E ele é velho, professora.
Luana procurou não voltar suas atenções para tal comentário. Desconversou e logo o sinal bateu. As crianças foram todas embora, mas Luana ficou ali, sentada na sala, observando o círculo no chão em que as crianças sentavam na hora das reflexões. Ela lembrava-se claramente da noite passada. Lembrava-se nítida e racionalmente de tudo o que fizera, mas algo a impedia de digerir tudo aquilo, de processar, de sentir novamente o que era estar naquele lugar. Um bloqueio, uma trava de emoções ligava-se toda vez que Luana saía à noite, de forma que a Luana da noite era diferente não comunicava-se com a de dia. Uma forma de defesa, talvez?, pois sem os dois lados da história não era possível refletir-se a respeito, então ambas Luanas seguiriam com sua forma de vida sem culpa ou consciência de suas falhas de caráter.

(continua)

Um comentário:

Sujeito Oculto disse...

Gostei muito! O assunto abordado é complexo!
A sociedade reprime todos os impulsos e distingue cada vez mais o Homem de sua Natureza Humana. Mas de fato devemos nos separar dela? Pois, pensemos: por um lado, a recionalidade nos difere de outros animais. Entretanto, por outro lado, essa mesma racionalidade nos poda com o objetivo de nos aperfeiçoar cada vez mais, nos distanciando da Natureza Humana, e fazendo com que cometamos crimes em prol do extremo Antropocentrismo.
Não é Natural, pois, que devamos seguir nossa Natureza Humana? Mas não estaríamos, assim, nos tornando menos Homem e mais Natureza, extinto? Uma sociedade não tolera extintos e não sobrevive baseada nos mesmos... Até que ponto devemos nos podar?