quarta-feira, 28 de setembro de 2011

(continuação)

Vinte minutos desde o golpe.
"Ora, ora, ora, Peixoto. Desde quando você é crente de que a ética não existe?", uma voz zombadora entrou na sala saída da garganta de um homem magro de dentes amarelos. "Você me dava um soco no olho direito toda vez que eu insistia em dizer-lhe isso há trinta e cinco anos."
O diretor sentiu seu corpo inteiro enrijecer ao escutar aquela voz que mais parecia um sibilo.
"As pessoas mudam, Igor. O mundo muda junto com elas. A sociedade brasileira de trinta e cinco anos atrás não sabia o que era ética ou se ela existia porque havia sido privada dela em 1964, quando nem eu nem você tínhamos idade o suficiente para saber o que significava um golpe daqueles!", e o ponto de exclamação da frase foi demarcado por o diretor levantar-se da mesa e tentar, em vão, servir-se de café.
"Droga de café...", ele resmungou baixo, enquanto constatava que não havia mais café na garrafa térmica. Suas mãos tremiam de abstinência. "Sônia, me faz café! Cadê a Sônia? Cadê o cara da papelada???!"
"O que é isso, Peixoto? Não fique tão nervoso! Sua horda de pseudo-cultos, pseudo-jornalistas e pseudo-democratas precisa de você para guiá-la por esse túnel escuro que o Brasil acabou de se tornar..."
"Igor, só porque você se vendeu para a política e se tornou um homem sem escrúpulos e rico não significa que eu o inveje por isso.". Peixoto foi caminhando até o homem, abriu a porta e apontou para fora. "E essa é uma reunião particular. Saia."
Igor por um instante pareceu abalado pela atitude firme de Peixoto, mas apenas lançou-lhe um olhar frio e se retirou. Peixoto pensou ter ouvido algo do tipo "eu tenho amigos no governo", mas deixou essa vaga frase sublimar-se de sua mente.
Pouco depois de a porta fechar-se para Igor, ela se abriu novamente. Uma mulher entrou, com os óculos tortos no rosto e pastas na mão.
"Sônia, cadê o cara da papelada e cadê o café?!"
A mulher respirou fundo e saiu, fechando a porta novamente.
"É isso, diretor!", uma voz difundida na massa de pessoas ali começou. "Em vez de falar diretamente do regime, o que nos traria o risco da censura, poderíamos falar de portas que se abrem e portas que se fecham nesse novo sistema. Como uma lista de prós e contras mais metafórica, e em vez de colocar o texto como uma reportagem comum, colocamos no espaço de editorial. Assim, estamos, mas não estamos reportando sobre o golpe."
Mais uma vez, desencadeou-se uma onda de vozes.
"Isso é absurdamente covarde"
"É a nossa única escolha"
"Metáforas? Num país com uma porcentagem absurda de analfabetos funcionais?!"
"É muito presunçoso, além do mais, quem lê o editorial?"
"Manifestos na forma de folhetins!".
Todos se calaram.
"Sim, folhetins. O jornal será composto de todos os seus cadernos habituais, mas na segunda página colocaremos o início de nosso manifesto - que será composto de nossa opinião a respeito do golpe com realismo - e todos os dias, ou toda semana, desenvolveremos o tema na forma de um romance. Se atingir massas é uma preocupação", ela continuou, ao ver pessoas tomando fôlego para protestar, "alternaremos com relação à dificuldade do texto. Complexidade moral semana sim, semana não. O que acham?"
Peixoto tentava conter o tremor das mãos. Ele estava prestes a se manifestar quando a porta foi novamente aberta. Um homem parecendo confuso, de olhos bem azuis, segurando uma maleta semi-aberta, foi empurrado para dentro, atrás dele entrou bufando Sônia, que já não usava mais seus óculos e parecia muito nervosa.
"Aqui está o cara da papelada, Peixoto! E eu não sou garçonete para trazer-lhe café!"

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