domingo, 3 de junho de 2012

anacronismo ambulante

Deixe-me ir, preciso andar; vou por aí a procurar... rir pra não chorar.

Ana estava sentada no chão, ao lado de uma mochila e uma bolsa pequenas, do aeroporto de Congonhas. Ela encarava as passagens recém-compradas e absurdamente caras para Paris. Ela não pensara racionalmente sobre o assunto; sabia que, se o fizesse, ela mudaria de ideia e voltaria para sua vida - e isso estava fora de questão.
Quem a visse de fora prontamente a consideraria uma menina mimada, insatisfeita com a própria insatisfação e inventando mágoa porque a própria vida nunca proporcionou-lhe nenhuma. Mas a verdade é que Ana era um anacronismo ambulante e tinha consciência de sua condição desde, bem, sempre. É ruim sentir-se extemporâneo, principalmente quando o próprio motivo de Ana sentir-se extemporânea é extemporâneo. Entende? Ana adorava pensar, e pensar nos torna tristes, e ninguém gosta de gente triste. Mas o pensar era tão intrínseco, tão inerente a ela; não tinha como combater as náuseas que constantemente a assolavam.
As pessoas passavam e a encaravam. Ela virava os olhos; já se acostumara a olhares curiosos de pessoas pequenas.
Paris. Por que Paris? Fora uma decisão quase subconsciente. Paris é história e filosofia em seu estado mais puro, é beleza, é lirismo, é tudo de que Ana precisava. Precisava dar um rumo para sua própria história, um sentido para seu próprio viver. Ah, sim. Isso também causaria estranhamento. "Por que isso, Ana?", as pessoas diriam. "Você já tem um apartamento, um estágio bem remunerado e um carro, de que mais precisa?". De muita coisa. Do essencial.
Cadê o Caio?
Seu celular não parava de vibrar. "Marina ligando". Recusar chamada. Hoje era a festa de aniversário surpresa de uma colega sua, e Ana tinha confirmado presença. Marina, a organizadora, provavelmente estava ligando para dar uma bronca em Ana, chamá-la de egoísta e mandá-la ir para a festa naquele instante. Não pelo fato de que Ana era querida, mas porque festas só têm graça se há vários convidados.
Colegas.
Ana tivera muitos colegas em sua vida. No colegial, na faculdade, no estágio e agora no curso preparatório. 22 anos, três escolas depois, quatro ambientes de socialização frequentados atualmente e nada mais do que dois amigos. Deprimente, certo? Sim. Insuportável? Não. Situação difícil de se encarar? Talvez. Mas Ana, depois de um tempo, e por mais melancólico que isso soe, aprendeu a ser um pouco mais autossuficiente, mesmo isso não preenchendo a exiguidade de não realmente ter alguns semelhantes com quem repartir suas misérias, abstrações e até júbilos, eventualmente.
O aeroporto estava impressionantemente movimentado para uma quarta-feira no meio de março, pensando bem. Passou um homem com a expressão tão triste que Ana teve vontade de abraçá-lo. Passou uma mãe de mãos dadas com o filho, já adulto, que tinha a expressão mista de felicidade, tristeza e antecipada saudade mais bonita do mundo. Passou um casal que com certeza estava saindo em lua-de-mel, julgando pelas suas expressões de que mais nada existia além deles e de suas passagens.
O celular vibrava de novo. Dessa vez era a mãe de Ana.
"Ana, você tem certeza?", a mãe repetia. "É claro que eu te dou apoio, só preciso de que você me dê certeza de que sabe o que está fazendo". Não, Ana não tinha certeza.

Quero assistir ao sol nascer, ver as águas dos rios correr...


(continua)

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