segunda-feira, 4 de junho de 2012

quero nascer, quero viver

Ouvir os pássaros cantar; eu quero nascer, quero viver.

Ela levava em sua mochila algumas poucas trocas de roupa, dois livros, um caderninho e música. Além de documentos, dinheiro e toda a tralha burocrática de que se necessita quando se viaja ao exterior, é claro. Mas ela não precisa de muito mais do que isso. O mais importante levava consigo, intocável - a vontade de fugir, que faria a viagem ser muito bem aproveitada.
Entre multidões estéreis, finalmente ele apareceu.
"Demorei?"
"Demorou"
"Mas pelo menos apareci"
"Em todos os sentidos"
Trocaram sorrisos. Ana e Caio se conheciam há pouco tempo, mas - e digo isso da forma mais clichê e piegas possível - identificaram-se um no outro logo no primeiro contato. Extemporaneidade e gênio difícil eram suas principais semelhanças. Digamos que, aprendendo a lidar um com o outro, aprenderam a lidar consigo mesmos - e poucas coisas são mais eficientes para se alcançar qualquer objetivo do que aprender a lidar consigo mesmo, aceitar-se, enxergar-se, conhecer-se.
Ana levantou-se e, ao lado de Caio, foi andando até a plataforma de embarque.
"Você tem certeza, Ana?"
"Por que as pessoas ficam me perguntando se eu tenho certeza ou não? Eu sei o que eu quero, e eu quero ir embora daqui, dar um tempo de tudo, sentir-me viva de novo, e se pra isso eu preciso ir até Paris é isso que eu vou fazer"
"Tá certo, então vamos"
"E você?"
"Eu o quê?"
"Tem certeza do que está fazendo?"
"Certeza do quê?"
"De que quer ir comigo"
"De tudo o que vem acontecendo comigo, uma das minhas únicas certezas é que eu quero estar com você"
"Hum, ok, certo. Boa resposta."
Ana suspirou. Engraçado isso, gostar de alguém.
Sentir-se viva de novo. Ana tinha dito isso quase sem pensar, mas analisando bem, era realmente este o problema: há tempos ela não se sentia viva; sentia-se apenas existente. Sim, pois entre viver e existir há uma grande distância filosófica e também prática. Viver exige muito mais coragem. Viver é fazer escolhas e assumir suas consequências. Viver é sentir. Viver é escolher seu próprio rumo (claro que dentro de certas limitações; ninguém é integralmente livre). Pois se nós não escolhermos nosso próprio rumo, quem o fará? A sociedade? Nossos pais? Nossos amigos? Se havia algo que tirava Ana de órbita era a sombra do pensamento de que ela não estava no controle de sua vida. Pobre menina idealista.
Podia ser idealista ideologicamente, mas no âmbito das relações pessoais as ideias tomavam outro rumo. Sua filosofia era de não esperar nada das pessoas -  nem atitudes boas, nem ruins. Ela simplesmente não esperava ser surpreendida por ninguém. Isso era, muitas vezes, ruim, pois fazia Ana subestimar indivíduos que acabam se mostrando muito, digamos, dignos de sua afeição. Mas, por outro lado, Ana preservou-se de muitas decepções agindo assim.
Já estavam procurando seus lugares no avião. Como se praxe, Ana sentara-se junto à janela, para poder, sem perturbar mais ninguém, olhar o quanto quisesse para o mar, o céu, a escuridão.
"Olha só", disse Caio, apontando para a tela de computador no assento da frente. "Frank Sinatra"
"Tá, mas quando estivermos chegando, vou colocar Piaf"
"Exatamente o que eu ia falar"
"Ia nada"
Caio bufou, e Ana riu.

A inexplicável sensação de estar sobrevoando o mar, e nada mais importar além do próprio ato de viajar. As paisagens vistas, as emoções sentidas, as reflexões e confabulações, e, é claro, o destino.
Porque viver é isso. Não se pode chegar ao destino final sem se ter aproveitado a viagem. Qual a vantagem de viajar de janelas fechadas, não enxergando mais nada, porque nada mais importa do que o final? Da mesma forma, por que viajar só por viajar, só para curtir a paisagem, sentir o sol no rosto e aproveitar a calma de não se ter compromisso nenhum até se chegar ao destino? O ato completo de viajar engloba tudo: aproveitar a viagem, não se deixar cegar por um só objetivo, permitindo-se olhar para os outros lados e ver inclusive outros destinos que poderia ser alcançados; mas não perder de foco o objetivo final - que, depois de uma viagem bem aproveitada, será infinitamente mais valorizado.
E isso, isso era o que estava faltando; viver pelo simples ato de viver - não por trabalhar, enriquecer, ter de se sustentar economicamente, apenas por viver, aproveitar a viagem.
O engraçado é que as pessoas não sabem viver. Quando não têm compromissos, perde-se a noção de vida. Domingos são o maior exemplo disso. O fenômeno do Ócio Dominical é justamente aquele pensar "não tenho que estudar, trabalhar, fazer contas, nada - o que eu faço comigo mesmo?", e perde-se a noção do quando parar, pensar e respirar fundo é bom. Ler um livro e saboreá-lo. Ouvir uma música e internalizá-la. Sentar na grama e perceber todo o organismo que o circunda.
Por isso Ana gostava de praias. Nada melhor do que sentar na areia e passar horas ouvindo o som do mar.

"Ei, acorda, nós chegamos"

(continua)

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