A moça encarou-o como se estivesse se divertindo com aquelas respostas. Ela tinha um ar de superioridade tal, que, quando sorria, fazia Eduardo sentir um impulso elétrico subindo-lhe pela espinha e forçando-o a gritar de desespero, de agonia, de desesperança. Como era inusitado sentir-se inferior. Era uma sensação tão agridoce.
- Conta-me como era tua vida antes.
- Antes do quê?
- Antes de vender-se ao mundo das vendas e manipulação.
- Eu era psicólogo. Hoje tenho ojeriza a pessoas. Minha vida baseava-se em tentar convencê-las de que não estavam levando a vida de uma forma saudável, de que elas poderiam ser felizes, de que - com um pouco de esforço - suas vidas poderiam mudar drasticamente... Mas depois de anos trabalhando com isso fica claro que ninguém quer realmente mudar. Há uma insistência em dar continuidade a suas vidas miseráveis, medíocres, medianas, fúteis - e eu tinha a sensação de que naquele consultório o mentecapto era eu mesmo! As pessoas chegavam e tentavam-me com a inebriante essência da ignorância, da apatia, do conformismo, tentavam vender-me um projeto de vida ideal, sem preocupações, sem grandes questionamentos...
- Mas não foi isso que te fez mudar.
- Não. Foi um paciente em particular. Tinha por volta de uns cinquenta anos. Chegou a meu consultório dizendo estar louco - dizendo estar louco de tanto não entender o mundo a sua volta. Tinha tendências suicidas, mas era presunçoso demais para acabar com a própria vida. Era incrivelmente deprimido. Tudo era motivo para uma reflexão pessimista ou uma análise destrutiva da sociedade. Tinha um histórico muito interessante - pois, diferente de muitos dos meus pacientes, não tivera uma família ou infância desregulada. Decidi estudá-lo a fundo, e descobri que tratava-se de um caso raro de excesso de consciência. Eu tentei ajudá-lo, tentei levá-lo a descobrir algo em sua vida pelo qual valesse a pena lutar, mas tudo que o fazia feliz e útil também o levava à bebida, às drogas, pois ele não se sentia capaz e forte o suficiente pra conseguir lidar com tudo aquilo.
- E o que te assustou foi o fato de que tu estavas destinado a acabar assim também.
Durante alguns curtos instantes, Eduardo teve a sensação de que já vira aquele rosto e já ouvira aquela voz antes. Sentia como se a moça fosse um amigo de infância que agora havia voltado para mostrá-lo um caminho para a absolvição. Ou era alguma ilusão causada pela sua mente, embriagada de memórias da sua antiga vida, do seu antigo eu. Difícil distinguir.
Um comentário:
O cérebro, a mente, o psiquismo...tudo muito complexo para distinguir entre real e imaginário. Mas é fato que buscamos sentido nos acontecimentos, nas pessoas que aparecem em nosso percurso,qualquer que seja o momento.
À essas pessoas que nos trazem de volta ou nos conduz até o melhor de nós, dou o nome de anjos; humanos mesmo.
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