segunda-feira, 4 de julho de 2011

união

Silêncio. Não do tipo constrangedor, nem do tipo questionador, nem do tipo ensurdecedor. Só o puro silêncio, sem nenhuma interpretação, podendo ser analisado como uma pausa entre notas.
- Você não vai me perguntar mais nada?
- Não. Não preciso saber mais nada pra concluir que você é absurdamente perturbada. Aliás, eu comecei a suspeitar disso quando vi você entrando. Apesar do seu olhar penetrante e da sua pose ferina, algumas coisas te denunciam, como suas unhas por fazer, seus sapatos gastos e seu cabelo por pintar. Se você vivesse inteiramente por essa vida, sua apresentação estaria impecável.
Luana surpreendeu-se mais uma vez. Torceu a barra do seu robe com as mãos e mordeu a língua.
- Você tem alguma ideia acerca do motivo de isso acontecer com você? Quero dizer, essa quebra dentro de você...
- O que é você? Um psicanalista? Eu não sei e não quero saber.
Victor olhou para baixo, compreensivamente. Aquele ataque fora só uma forma de defesa.
- Sabe, minha mulher diz que eu sou um babuíno que não consegue controlar seus impulsos sexuais. Não sei por que ela começou a falar isso, nunca dei motivos para tal, mas uma mulher infeliz consegue achar impurezas em qualquer lugar, e de certa forma...
Victor ia falando, mas Luana sentia como se tivesse sido sugada para outra dimensão. Uma dor de cabeça insuportável e um bombardeio de memórias haviam tomado conta de sua mente. Ela queria gritar, queria correr, jogar-se de cima do prédio, bater sua cabeça contra a parede para fazer tudo aquilo parar, mas seu corpo só respondeu àquilo com um súbito desmaio.
Uma criança sorrindo, de rosto conhecido - um dos alunos de Luana. Um homem chegando - Victor. Os dois aproximando-se. Eram filho e pai. A criança corre, parecia não querer ficar na presença do pai, ela quer ser livre, fazer o que quiser. O pai coloca as mãos no rosto, visivelmente transtornado pelas atitudes do filho, refletindo se não é melhor deixá-lo fugir, vira as costas e começa a ir embora. Mas algo os impede. A criança tropeça e cai, o pai, instintivamente ao ouvir o barulho da queda, vira o rosto e o vê, sangrando, chorando, e corre em sua ajuda.
Quando estavam na iminência de darem-se as mãos, a cena muda.
A sala onde Luana dava aula. Em vez das crianças, lá estavam babuínos, e a professora usava vermelho e um decote que mostrava mais do que deveria. Ela dava aula. Um dos babuínos começa a comportar-se mal.
Quando Luana ia reprimi-lo, a cena muda.
A sala vermelha. Luana de branco, óculos e cabelos presos num rabo-de-cavalo, sentada numa poltrona, rodeada por prostitutas, ensinando-as história. Uma das moças levanta a mão para fazer uma pergunta.
Quando Luana ia atendê-la, ela acorda.

No hospital.

O barulho esperançoso do monitor que mostrava sua frequência cardíaca foi ficando cada vez mais alto, sons de pessoas andando e conversando ao longe foram ficando mais distintos, pouco a pouco ela começou a ouvir os barulhos da cidade até que, por fim, abriu os olhos.
Viu uma enfermeira se aproximando.
- Ah, você acordou! Antes do previsto, que bom! Achávamos que você só ia acordar daqui uns três ou quatro meses.
- O quê? Faz quanto tempo que eu estou aqui?
- Dois meses. Pelo que sei, você sofreu grande estresse e seu cérebro meio que entrou em curto-circuito. Você se desligou, garota, entrou em coma. Que bom que foi socorrida a tempo, o seu marido estava super preocupado...
- Quem?
- Seu marido, Victor. Foi ele quem te trouxe aqui, lembra?
- Meu... marido?
Victor entra na sala, com uma expressão ansiosa e cabelos amassados de quem tinha acabado de acordar.
- Fui bipado, me disseram que estavam monitorando a atividade cerebral e que ela estava se normalizando e...
Os olhos de Victor encontraram os de Luana. Ele prendeu sua respiração um instante.
- Minha garota, você acordou!, ele saiu tropeçando e caiu aos pés da maca de Luana, segurando sua mão. Você se lembra do que aconteceu?
Luana acenou negativamente com a cabeça.
- Não tem importância, olha, olha quem veio aqui te visitar... Olha, Tiago, a mamãe acordou!
Um menino de aproximadamente 6 anos foi entrando timidamente no quarto. Cabelos louros, olhos cor-de-mel, suas mãozinhas torcendo a barra da camiseta.
- Mamãe, você dormiu tanto tempo...

Ao ver esse rosto, ao ver o rosto de Tiago e olhar para os olhos cor-de-mel de Victor, tudo atingiu Luana de novo. Ela lembrou-se de conhecer Victor na faculdade e casar-se com ele alguns anos depois, de começar sua carreira de professora, de ter um filho, de começar a ter lapsos momentâneos e perda de memória recente, de ir a um psiquiatra que diagnosticou-a com um certo transtorno de personalidade, lembrou-se de começar a surtar com sua vida perfeita com Victor, de dar aulas para seu próprio filho, de começar a irritar-se com nada, de começar a sair a noite, de arrumar um escape para toda sua bilateralidade, de Victor apoiá-la e encontrar-se com essa outra personalidade e ajudá-la a se recuperar... Tudo isso atingiu-a em alguns milésimos de segundo, mas, dessa vez, não causou um desmaio.

- Você está bem, meu amor?, a voz de Victor a trouxe de volta.
- Estou, sim... acho que agora estou bem.

Tiago sorriu e sentou-se no pé da maca de Luana.
- Senti sua falta, mamãe.

Um comentário:

Buxexa disse...

Gostei muito do desfecho da história, está muito bem feito.
PS. Vc é chata, mas eu amo você.