quinta-feira, 11 de agosto de 2011

cegueira

- O que é ver?
Por essa eu não esperava. Éramos amigos havia uns dois anos e foi a primeira vez que ele me perguntou isso.
- Quero dizer, como é? Dói?
- Não, não dói, Beto. Na verdade, você não sente nada.
- Como, não sente nada? Quando eu encosto em algo cortante, eu sinto dor. Quando você... vê algo ruim, você não sente dor?
Fiquei alguns segundos hesitante. Não é que ele tinha razão? Não é que ele sabia mais sobre a visão do que eu?
- Ah, Beto... sim, quando eu vejo algo triste eu fico triste, mas não é uma dor física, é uma dor, digamos, espiritual, moral, sabe? Essa dor, se ficar muito tempo dentro de você, pode virar uma dor física, mas num primeiro momento, ver não dói.
- Mas, Carol, já ouvi tanta gente dizer que preferiria ser cego do que ver todas as misérias que existem no nosso mundo. Como você explica isso?
- Existem várias formas de se ser cego. Uma das formas é a literal, literalmente não conseguir enxergar, mas outra, a mais comum, é uma epidemia crescente na nossa geração: as pessoas se recusam a enxergar a própria realidade, e simbolicamente fecham os olhos pra tudo, entende? Você tem mais visão do que metade das pessoas que eu conheço.
- Tá, mas agora eu quero saber como é, mesmo, sabe? O que são cores? O que é ser bonito?
Eu nunca me sentira tão privilegiada por enxergar antes na minha breve existência. Só de pensar em nunca ter visto um pôr-do-sol, um céu estrelado, um sorriso, uma lágrima, pássaros voando, o vento batendo nas árvores, as mudanças de expressão das pessoas...
- Você sabe muito bem o que é ser bonito, Beto.
- Mas é diferente.
- Exatamente! É diferente! E o seu conceito de beleza é muito acima do conceito de beleza das pessoas que enxergam, pois a partir do momento que se enxerga o rosto da pessoa, a roupa que ela usa, como ela anda ou as caras que faz enquanto fala, você já tem uma pré-ideia de como essa pessoa é, você a julga, entende? Quando não se enxerga, não há outra forma de conhecer a pessoa que não seja pela conversa, e por esta, sim, pode-se conhecer alguém de verdade e dizer se ela é bonita ou... feia.
Beto bufou. Ele não parecia satisfeito com minhas respostas. Acho que ele esperava coisas mais materiais e objetivas. A conversa estava sendo muito mais enriquecedora para mim do que para ele.
- Carol... eu sou bonito?
Olhei para ele. Seus olhos azuis extremamente claros encaravam o nada, o vazio, mas ele se curvava na minha direção e tinha seus joelhos apontados para mim.
- Claro que é, Beto! Você é uma das pessoas mais admiráveis que eu já conheci, sem falar...
- Não, Carol. Eu quero dizer bonito para quem enxerga.
Sim, muito bonito, inclusive. Sobrancelhas delineadas, grandes cílios, boca bem desenhada, cabelos castanhos sedosos, maxilar forte. Se ele soubesse o quão bonito é fisicamente não teria nem metade do caráter que tem. A grande tendência de hoje é de a beleza corromper imensamente as pessoas.
- Sim, Beto, mas você não devia se ligar a isso, sabe? Muitas meninas se aproximam de você só por causa da sua beleza, mas quando percebem que você é mais do que um rosto bonito e que você não liga para o quão loiras tunadas elas são, elas meio que se assustam. Sabe, Beto? Acho que a sua cegueira é um dos maiores presentes que você tem. Não só você, mas todos ao seu redor.
- Tá, Carol, mas só uma vez, só uma única vez, eu queria poder enxergar.
- Pra ver o que, Beto? Não há nada nesse mundo pra ver que você já não conheça de uma forma ou outra... claro, eu não abriria mão da minha visão, porque algumas imagens valem muito, mas não por serem imagens, mas por o que elas causam, entende? Eu acho incrível que você não precise ver o rosto de alguém pra saber como a pessoa está se sentindo, você entende?
- Mas conversa nenhuma vai me fazer ver o seu rosto.
Senti meu coração partir em dois. Quase deu pra escutar o som dos meus batimentos cardíacos acelerando. O rosto ingênuo de Beto denunciava que ele ainda não tinha captado o que eu senti ao ouvir aquela frase dele.
- Meu rosto?... por que razão você iria querer ver meu rosto, se você já viu tanto além dele?
Beto tateou pelos meus braços até colocar-se na posição certa e abraçou-me.
- Você é incrível, Carol, por que diz que sou seu único amigo?
- Ah, você não entenderia.
Enquanto me despedia dele, passei meus dedos pela profunda cicatriz que cortava meu rosto na diagonal. "Você não entenderia mesmo.".

2 comentários:

Anônimo disse...

Este é um dos textos do seu blog que mais me chamou a atenção.
Tenho meus motivos pessoais para tal, mas o que posso dizer é que você se expressa de forma que me agrada bastante. Parabéns e obrigada pelas suas palavras, de verdade.

Anônimo disse...

Amei esse texto. Parabéns.