Um homem pálido, com várias tonalidades de olheiras, cabelos ainda úmidos, ombros tensos e os braços inertes sobre a mesa. Seu olhar vazio encarava a xícara de café a sua frente.
- Então? Você vai falar como fez, ou nós vamos ter de adivinhar e te dar uma pena muito maior do que você legalmente merece?, disse um homem de altura média, um pouco acima do peso, com o rosto muito vermelho e com uma veia no pescoço saltada, denunciando seu nervosismo.
A sala era pequena e claustrofóbica. Acho que isso pode explicar por que razões tantos segredos eram ditos ali: as paredes fazem uma pressão tão grande que você não aguenta e entrega o jogo.
- Sete tiros. Três na cabeça, três no peito, um no ventre. Três facadas. Duas no peito e uma no pulso direito. E ainda assim, nenhum sinal de estupro, diga-me, como você fez isso?
- Isso... o quê?
- Estuprá-la e não deixar rastros! Você tem pinto pequeno ou o que, cidadão?
- Eu... eu não a estuprei.
O delegado encarou-o com impaciência e frustração. Que velhaco! Que canalha! Estava ali, sentado, encarando sua xícara de café, sem nenhum sinal de remorso ou agitação!
- Então diga-me, colega. Por que tantos tiros e facadas?
- Ela... ela não sofreu. Eu a esfaqueei depois de tê-la posto para dormir.
O delegado fitou-o, incrédulo.
- Posto pra dormir?, e ele bateu com todas as suas forças na mesa. A sala inteira vibrou. Posto pra dormir?! A vítima era uma moça decente, nunca havia feito mal para ninguém, ela, entre muitos, merecia viver e continuar com seu bom trabalho! Você tira a chance da sociedade de aprender com uma pessoa admirável, e você a pôs pra dormir? Você tira uma noiva e uma mãe, e você a pôs para dormir?! Você a assassinou, brutalmente, e a estuprou! Você é um assassino, problemático, psicótico, mais por ter matado justo essa pessoa do que por ter de fato matado alguém!
O homem fechou os punhos com muita força. Fechou os olhos. Levantou a cabeça com calma e olhou fundo nos olhos do delegado, que estremeceu. Mesmo num olhar tão frio conseguia-se captar um relance de infantilidade e insegurança.
- Eu não a maculei. Eu... eu não faria isso com ela.
O delegado virou-se para a parede que continha um grande espelho e jogou os braços para cima, num sinal de rendição. Ouviu-se um barulho e ele saiu pela porta. O homem continuava com os punhos cerrados, completamente quieto. O delegado encontrou-se com os outros policiais, observando o homem através do espelho.
- Ele não vai falar mais nada, Roberto, o delegado disse, limpando a testa com um lenço.
- Eu já esperava isso. Roberto tinha sua testa franzida e segurava o queixo com a mão esquerda. Foi um crime passional, Carlos, assassinos desse tipo geralmente são ou já foram obcecados por suas vítimas; são completamente psicóticos, isso quando já não foram oficialmente diagnosticados com algum distúrbio...
Uma moça conservava-se quieta, no fundo da sala. Tirava, colocava e retirava a tampa de sua caneta. Tinha seus cabelos muito pretos presos em um rabo-de-cavalo baixo e visivelmente feito com pressa.
- Sabem; ela começou; eu dei uma olhada nas fotos da cena do crime e nos relatos de conhecidos desse homem e da vítima... E isso não me parece um crime passional qualquer. Quero dizer, parece que aconteceu todo um ritual. Vocês não percebem que os tiros e facadas foram em lugares previamente escolhidos e que provavelmente têm um significado? Por que outro motivo ele daria três tiros na cabeça, três no peito e apenas um no ventre? Pensem. Ela pode ter feito alguma escolha racional e emocional que o desagradou. Ou ela seguiu um caminho diferente do dele. E a facada no pulso direito, a vítima estava noiva, e o anel de noivado usa-se...
-... na mão direita; Roberto completou.
- Eu realmente acredito que ele não a estuprou, a obsessão dele por ela era provavelmente algo mais espiritual, mais platônico, algo até maternal, talvez? Pelo que eu li, ela era pediatra, e ele era seu faxineiro havia mais de cinco anos. O que a secretária disse foi que ele demitiu-se depois de encontrar a vítima tendo relações com o noivo no banheiro do consultório.
- E a vítima tinha quantos anos mesmo?
- Vinte e sete. Se formos pelo raciocínio de que o assassino projetou na vítima uma imagem de mãe, ele provavelmente decepcionou-se depois de vê-la com o noivo, pois isso sujaria a imagem que ele havia feito dela.
Ela parou de falar e observou as feições de Roberto e de Carlos. Ambos pareciam extremamente absortos em seus pensamentos. Ela mentalmente sorriu satisfeita por ter conseguido impressioná-los.
- Pode ser, Fernanda. Pode ser. Mas nós não podemos ficar só no "pode ser", temos de extrair a verdade do homem.
- Posso falar com ele? Sim?
Ela saiu da sala, entrou naquela claustrofóbica e sentou-se na frente de homem.
- Que coisa horrível pra se fazer, certo?
Ele encarou-a. Aquele quê de infantilidade estava ali de novo.
- Quero dizer, fazer aquelas coisas com o noivo no banheiro do consultório? Isso não é coisa que uma mãe devia fazer. E se as crianças vissem? Na verdade, ela não devia fazer aquele tipo de coisa de jeito nenhum. É repugnante.
- Ela me tratava muito bem, sabe. Elogiava o meu trabalho e sorria para mim.
Ele parou e fungou.
- Mas aí eu a vi fazendo... aquilo, sabe?! E aí pensei que se ela faz aquilo com o noivo, deve fazer com qualquer um. Eu vi que ela passou as mãos no cabelo do marido da mesma forma como ela passava as mãos nos cabelos das crianças, seus pacientes. E aí eu pensei que ela fosse que nem a minha mãe.
Fernanda olhava-o impressionada. Ela estava ouvindo muito mais do que esperava.
- E aí eu fiz o que eu tinha que fazer, né... quero dizer, ela mereceu, ela me decepcionou.
- E por que você não a estuprou?
- Porque quando é com uma mãe não é estupro, é amor. E não se mata alguém com amor.
- Sua mãe... sua mãe foi quem te disse isso?
- É, sim... Ela me amava muito.
Fernanda olhou para o espelho. Viu sua própria expressão; uma mistura de pena com repugnância. Saiu da sala claustrofóbica e voltou para aquela com os policiais.
Roberto estava com a mão esquerda no vidro e a mão direita no quadril, analisando o homem; Carlos limpava o suor da testa com o lenço.
- Não vai conseguir se livrar da cadeia, mas a pena provavelmente poderá ser reduzida se a defesa alegar insanidade mental, o que é claro que há nesse caso.
- Vamos encaminhá-lo para uma avaliação psicológica... e procurem registros que envolvam o nome da mãe dele... vamos ver se essa história é verdadeira.
Fernanda não estava realmente escutando, ainda encarava o homem. Tão perturbado, tão complexo! A escolha dos lugares para os tiros e facadas, se foi inconsciente, revela toda a sensibilidade daquele indivíduo. E se foi consciente, quão brilhante!
Balançou a cabeça, como se quisesse afastar aqueles pensamentos. O homem é um assassino. É perturbado, sim, mas é um assassino. Pode não merecer, mas precisa de ajuda, sim. A relação de Fernanda com assassinos passionais era bem instável.
Na semana seguinte, Fernanda ficou sabendo que dois dias antes do julgamento com o júri o homem se suicidou, intoxicado de monóxido de carbono. Foi encontrado deitado na posição fetal. Seus últimos registros em seu diário diziam que ele precisava ir dormir.
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