Ele se viu rodeado de tantas luzes, carros brilhantes, neons, saias rodadas e cinturas finas que quase se esqueceu do porquê de estar ali. Procurava um pouco de diversão, e assistir a um filme no velho cinema da cidade parecia uma boa idéia. Em meio àquela multidão de pessoas, se enfiou numa das filas da bilheteria e ouviu algumas senhoras falando do passado e cantando antigas marchinhas.
"Bota o retrato do velho, bota no mesmo lugar, o sorriso do velhinho faz a gente trabalhar..."
A marchinha de 1950 ainda ecoava em sua cabeça. JK agora assumia o poder, e ele sentia que as coisas começariam a melhorar dali pra frente. Ele prometia criar uma nova capital do Brasil, prometia estabilidade econômica, prometeu progressos. Isso era o que ele queria ver, um Brasil andando somente pra frente, sem militares no comando. Sim... ele nasceu e cresceu vendo Getúlio criar ministérios e mais ministérios, mas mesmo assim, acabou exilado. Mas esse tal de JK parecia ser digno de confiança.
Apesar de sua tenra idade, ele se envolvia do tanto que conseguia e podia com questões políticas e econômicas. Não que ele achasse que pudesse fazer alguma coisa - mas seu sonho era iniciar uma revolução. Seu sonho era participar de um Movimento Nacionalista Revolucionário, usar codinomes, armar golpes contra o Estado... mas ele sabia que só haveria necessidade disso caso a situação no Brasil não estivesse lá das melhores. E apesar de ser um rebelde, ele com certeza tinha fé no futuro.
Rebelde... O que estava na moda agora era ser rebelde sem causa. Era ter sua juventude transviada. Era ter sua inocência corrompida por bebida, drogas e jaquetas de couro. "Não, obrigado", ele pensava. Seus amigos revoltados com a vida resolveram mudar de visual e investir em calças jeans justas, cigarro na boca e jaqueta de couro - e as meninas subiam seus cabelos cada vez mais. De jeito nenhum que ele aderiria àquela moda - ele tinha mais o que fazer.
Suas reflexões foram interrompidas por um suave toque no ombro, que o assustou um pouco.
- Moço, é a sua vez - disse uma voz de trás dele. Ele virou para trás, para encarar o dono ou dona daquela mão tão macia, e encontrou olhos grandes e amendoados, e um cabelo liso porém nada armado, que ia até a cintura. - Desculpe se o assustei, mas é sua vez - ela repetiu.
Então ele entendeu do que ela falava - era sua vez de comprar o ingresso do filme. Mecanicamente, comprou, se afastou da fila e se sentou em uma poltrona próxima à sala do filme ao qual ele ia assistir. Observou de novo a garota dos cabelos lisos escorridos. Notou que ela não usava vestido, e sim uma calça jeans que parecia um tanto velha, e uma camisa que a dava um ar de mais velha, apesar de seu rosto declarar ao mundo sua inocência e pouca idade.
A garota não comprou ingresso nenhum - ela tirou vários panfletos de sua bolsa e colocou numa bancada ao lado da bilheteria. Depois se dirigiu à porta do cinema, e começou a entregar panfletos às pessoas que a davam atenção.
- Pratique seu direito como cidadão. Exija do presidente suas promessas - e entregou um panfleto. - Olá, moça. Pratique seu direito como cidadã. Faça com que JK cumpra o que prometeu. Boa tarde, senhor, pratique seu direito como cidadão...
E assim foi, pessoa por pessoa. Ele poderia ter ficado ali observando-a a noite inteira, mas logo chegou a hora de o filme começar. Foi até a sala do filme, e se despediu da garota com um aceno de cabeça. Recebeu em troca um sorriso cheio de dentes, e se perguntou se eles se veriam de novo. Em 1968, quem sabe.
Um comentário:
Os últimos textos estão carregados de historicidade, de informações biográficas, de descrição de cenários de épocas.Gosto disso, gosto dessa integração de cultura e ficção.
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