terça-feira, 31 de agosto de 2010

Desafinado

Algumas tardes eram tão cinzentas sem a presença dela, Marina.
João estava confortavelmente sentado numa cadeira de sol situada na varanda de seu apartamento de vista pro mar. Varanda grande, com samambaias, churrasqueira e um mini-rádio. Apartamento comprado por ele de presente a ela. Custou algumas centenas de milhares de reais, mas meio que valia a pena, a vista era bonita, no vigésimo andar é mais fresco, o prédio tinha uma ótima localização... Tudo inclinava os dois para uma vida perfeita e saudável.
Colocou seus óculos de sol, pois o sol costuma estar ainda alto às seis horas da tarde no verão. Deu um gole na mistura de uísque e gelo derretido que se encontrava em seu copo e suspirou. Fez um momento de silêncio ao reconhecer a introdução de uma de suas músicas preferidas tocando no seu rádio.

"Quando eu vou cantar, você não deixa e sempre vêm a mesma queixa..."

Ah! Boas, boas lembranças com aquela música. Tinha toda uma história, essa música. Quando João conheceu Marina, num bar no Rio de Janeiro, essa música era o plano de fundo. Quando foram exilados para a Europa, durante a ditadura, cantavam essa música nas ruas para mostrarem que eram brasileiros. Quando tiveram o primeiro filho, era a música de ninar. Tanta história.

"...diz que eu desafino, que eu não sei cantar, você é tão bonita, mas tua beleza também pode se enganar..."

João pousou o copo de uísque ao lado do rádio, pegou um charuto e o acendeu. As cinzas do charuto, o cheiro do charuto enojavam Marina. Como ela podia não gostar daquele cheiro? Era fascinante para João. E essa era uma das poucas diferenças entre os dois. O uísque, ah sim, o uísque. Marina gostava de champanhe; tinha classe; estilo; autoconfiança. Era jovem, mas era esperta, sabia o que queria da vida, e era a personificação do padrão de beleza de sua geração. Tinha gênio e voz muito fortes, seu poder de persuasão e dissimulação era maior que de qualquer Capitu.

"...se você disser que eu desafino, amor, saiba que isto em mim provoca imensa dor... só privilegiados têm o ouvido igual ao seu, eu possuo apenas o que Deus me deu..."

Sim, isso também. Marina era a pessoa mais musical que João já conhecera. Gostava de tudo do bom e do melhor. Era fã de Tom Jobim, Vinicius, Chico Buarque, mas também muita música clássica, ópera, e jazz... O jazz.
Ela também era muito intelectual. Sempre querendo protestar nas ruas, querendo eleições diretas, lendo sobre política, estudando história e sociologia.
João não era assim tão musical e fazia pouco caso quando Marina começava a falar de algo relacionado a música. Ela ficava chateada. Só não mais que João, que ficava imaginando se ela sentia tanta falta assim de um lado musical em João.
Mas ele era intelectual, sim. O problema é que Marina era esquerdista e João... bem, João veio de uma família de burgueses. Não tinha porque ele ser esquerdista. Ele era chamado de desafinado até nisso, como se ele falasse sobre a situação do país e soluções para estas num tom errado.

"...se você insiste em classificar meu comportamento de anti-musical, eu mesmo mentindo devo argumentar que isto é Bossa Nova, isto é muito natural..."

E essa era a parte da música que mais fazia sentido para João. Marina nunca usara as palavras "anti-musical" para defini-lo, mas ele sabia bem que era isso que ela pensava. E as conversas sobre música sempre acabavam em discussão. As discussões de política, então, nem se fala... Marina chegou a atirar um copo - de champanhe - em João, no ano novo, quando ambos faziam desejos para o próximo ano. Marina desejou por eleições diretas e João desejou por um carro novo.
Os pensamentos estavam deixando João mais tonto que o uísque em si. Apagou o charuto e aumentou o volume. Respirou fundo o ar frio de lá de cima, do vigésimo andar. Sentiu arrepiar-se. Música nenhuma nunca tinha feito João se sentir assim, mas Desafinado só o fazia por causa de sua história.

"...o que você não sabe nem sequer pressente é que os desafinados também têm um coração. Fotografei você na minha Rolley-Flex, revelou-se a sua enorme ingratidão..."

Essa parte também fazia bastante sentido. "Os desafinados também têm um coração". Marina julgava-o sem coração, sem alma e sem opinião por não se empolgar e não ir atrás de informações sobre música e política. E ele apenas refletia sobre a relação entre as duas coisas.
Ao ouvir "Rolley-Flex", deixou escapar um esboço de sorriso... Como tiraram fotos. João adorava fotografar Marina; ela tinha uma exuberância natural, um olhar expressivo... Sua risada... Ela jogava a cabeça para trás, movendo seus cabelos negros e sedosos, numa sensualidade que apenas João conseguia captar em fotos... ou não. O sorriso de João se desfez. Lembrou-se... Tiveram uma briga terrível quando João um dia chegou em casa e viu Marina posando para um outro fotógrafo, jovem e estrangeiro. E fazia as poses e caras que João ensinara. Vagabunda.

"Só não poderá falar assim do meu amor, este é o maior que você pode encontrar, viu? Você com a sua música esqueceu o principal: que no peito dos desafinados, no fundo do peito bate calado... que no peito dos desafinados também bate um coração."

Exatamente... No peito do desafinado João também bate um coração, movido pelo maior amor que Marina poderia encontrar. Ela partiu os desafinados coração e mente de João quando fugiu para os Estados Unidos, sem deixar nenhum aviso, explicação ou previsão de retorno, com o fotógrafo (que era americano) e uma banda de jazz. Chamaram-na para ser a vocalista, e, prevendo a realização de um sonho, Marina deixou-se ir, inocentemente. Deixou emprego, família, filhos, cachorros, gatos, samambaias, sonhos e um coração desafinado para trás.
João olhou para o charuto apagado e para o uísque. Sua vida tornou-se miserável sem ela. Afinal, lá estava ele, um velho rabugento, fresco, de óculos de sol, bebendo uísque e fumando, ouvindo a música principal da trilha sonora de sua vida no apartamento em que passou seus anos mais felizes e perturbados...
João respirou fundo, e assim que o último acorde foi tocado, desligou o rádio e saiu da varanda. O sol se punha.
As tardes eram tão cinzentas sem ela, Marina. Ele tinha apenas uísque e cinzas de charuto, agora.

3 comentários:

vmbsf disse...

Sério, eu fiquei com dó desse João, de como ele ficou largado, fumando e bebendo; que cena miserável...
Gostei da contextualização da música.

antonella restini disse...

que lindo, sis.
lindo e triste.

Buxexa disse...

Bru, ótimo texto, gostei da citação do Jazz principalmente... ngm liga pro jazz