O desfile acabou. Após entrarmos batendo palmas, eu e minhas companheiras seguimos pelo backstage para descobrir o que faríamos a seguir. Enquanto uma mulher tirava minha roupa, a outra minha maquiagem, um cara desarrumava meu cabelo, um tentava tirar minhas botas e dois ou três fotógrafos pesquisarem ângulos bons, ouvi de longe meu agente dizendo minha programação para essa semana. Eu teria duas horas de sono, depois seguiria para 3 castings seguidos, depois vôo para Milão, depois voltamos a Paris, depois ensaio fotográfico com mais 4 marcas diferentes e vôo para New York. Tudo bem, eu pensei. A temporada do ano passado, em que eu era novidade, consegui fazer mais coisas ainda. Com ajuda da metanfetamina, claro. Muitas amigas minhas usam cocaína ou meta. Não sabiam?
Mas eu não sabia se queria fazer tudo isso. Olhei ao meu redor. Eu com meus 24 anos já era uma das veteranas dali. Moças, não, meninas de 14 anos desfilavam ao meu lado. Deve ser difícil, quero dizer, e se pedirem para ela fazer uma pose sensual, uma expressão sensual? Como ela vai fazer, se ela provavelmente nunca fez sexo? E todos os abusos que eu já sofri em ensaios fotográficos? Elas estão psicologicamente prontas para isso? Não sei.
Não sei se eu ligo. Isso me entristece. Sinto-me muito vazia, às vezes. Quero dizer, recebemos toda essa atenção, estamos tão acostumadas a mimos, a motoristas, a tendo alguém para controlar nossa vida, que me pergunto se eu saberia, se eu conseguiria viver sozinha amanhã. Já visitei todos os continentes, mas não sei pegar um ônibus. Eu não saberia administrar meu dinheiro, porque nunca precisei. Acho que nunca vivi.
Convivo com essas meninas que são consideradas maravilhosas, mas nem elas são tão bonitas como elas mesmas. Quero dizer, toda a beleza delas é uma combinação de produção com edição. E às vezes eu fico imaginando a repercussão disso tudo... pois tenho certeza de que essas meninas bobas de 13, 14 anos realmente acreditam que é saudável ter 1.75m e pesar 45kg, ou que é normal uma modelo de 17 anos não ter absolutamente nenhuma espinha. Quero dizer, em alguns castings aos quais eu vou a privada do banheiro fica entupida de vômito.
Às vezes me sinto só um corpo. É assim como sou vista. Um corpo que desfila roupas chiques, porque estas caem bem nesse. A agência, os agenciadores, meu agente, eles não ligam para meu estado, para minha saúde, eles só querem ganhar dinheiro em cima da minha imagem. É muito estressante às vezes, quero dizer, eu só paro para trabalhar quando preciso tomar soro no hospital...
Penso que às vezes seria bom se eu recebesse atenção por outro motivo que não fosse meu corpo, sabe? Quero dizer, sempre me perguntam com quem eu estou, quanto eu peso, quantos anos eu tenho, qual minha marca favorita e qual minha cor de esmalte preferida, nas entrevistas, mas nunca me perguntam o que eu gosto de ouvir, ler, assistir, fazer... Eu sou uma pessoa, sabe? Apesar de toda a materialização do meu corpo, eu ainda sou uma pessoa, eu choro, eu como, eu me arrependo, eu fico cansada, eu fico doente, eu choro mais... porque você acha que modelos usam tanto óculos escuros?
Mas apesar de tudo isso, eu nunca sei o que fazer, se eu continuo trabalhando e ganho dinheiro ou se paro e, sei lá, corro atrás de estudo... ambas opções são muito difíceis, pois, como a maioria das modelos, parei de ir à escola muito nova... além do mais, vou fazer faculdade do quê?
Bom. Acabou meu intervalo. Meu agente disse que ultimamente tenho passado um exagero de tempo no banheiro. Ele diz que mais rumores sobre uma possível anorexia ou bulimia poderiam arruinar de vez minha carreira.
Mas não é como se eu ligasse.
(baseado em um documentário que vi outro dia na GNT.)
2 comentários:
Se foi o mesmo documentário que eu vi, parabéns, você conseguiu passar para o papel o que muitas pessoas pensaram ao ver aquilo, inclusive eu.
é interessante. lemos, bom, pelo menos eu leio, aqueles livros recheados de crônicas e contos de autores geniais, desde Clarice Lispector à Machado de Assis (certo, não é desde, mas sim apenas os dois, meus maiores escritores). é difícil pegar um livro bom atual. que fale sobre hoje, mas não teoricamente, praticamente. um livro que tenha uma boa prosa e fale que hoje eu digitei na internet e não escrevi no meu caderninho de folhas amareladas.
você fez isso. essa boa prosa.
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