sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

lavanda

r-r-r-r
r-r-r-r
r-r-r-r
r-r-r-r

Clarice acordou com toque do despertador quebrado. Tirou a máscara de dormir dos olhos; arrependeu-se - quanta claridade, seus olhos até doíam. Fazia um tempo desde a última vez que vira a luz do sol. Olhou para o lado - Marcelo já havia levantado. Olhou para o outro - lírios brancos. Que brancura. Que vida. Que perfume.

Que dor de cabeça.

Era seu aniversário.

Ouviu passos pelo corredor. Foram ficando cada vez mais altos e passaram reto pela porta de seu quarto; depois pararam e voltaram.
"Ah, ótimo! Você acordou". Ele foi até ela e a beijou na testa. Sua cabeça quase explodiu; por que ele falava tão alto? "Está se sentindo melhor? Sua família está chegando para o almoço. Apronte-se.". Falou isso segurando o queixo de Clarice e saiu, fechando a porta.

Que dor de cabeça.

Levantou-se de lado e colocou os pés no chão. Sentiu um arrepio ao sentir o piso frio em vez de suas pantufas. Tateou-o um pouco até achá-las e as pôs. Abriu o armário, não se sentiu atraída por aquelas roupas, não se sentiu disposta para trocar-se, e, por fim, colocou o roupão por cima da roupa de dormir. Mas que claridade!, o sol emitia tanta luz assim sempre? Como é possível não se incomodar?
Ela pensara, depois de ontem, que tinha se libertado. Ela pensara que deixar o sangue escorrer um pouco fosse fazer seus fantasmas escorrerem para fora de seu corpo com ele. Olhar o líquido espesso e vermelho descer por seus dedos e gotejar no piso branco do banheiro fora relaxante, a sensação de transbordamento acabou. Sentiu-se com a cabeça leve, e por um momento não pensou em mais nada além da própria respiração. Se é assim que a morte é, então era realmente o que ela achava. Até que tudo apagou. Acordou em sua cama, com curativos no braço. A sensação de leveza foi creditada à falta de sangue e de oxigenação no cérebro; a preocupação com a respiração foi definida como instinto de sobrevivência.
Antes de descer e ter que lidar com tudo aquilo, tentando ignorar seu incômodo com a luz do sol, Clarice foi até a janela e abriu-a. Foi invadida por um cheiro de lavanda que conseguiu alcançar os cantos mais sombrios e escondidos de sua memória - memória de tempos em que ela fora feliz, sem tormentos, sem dúvidas, só a certeza de uma vida pela frente. Argh, que vontade de vomitar. Felicidade - que raiva, que ódio. Por que ela tivera sua dose de felicidade? Tudo seria mais fácil se ela não tivesse experimentado de sua essência. Assim, ela não saberia que é infeliz. Assim, não escutaria em sua cabeça um eterno papagaio com transtorno de ansiedade dizendo "braaah, você é infeliz, braaah, você é miserável".
O sol queimava sua pele. A luz insistia em tentar penetrá-la. Mas Clarice não queria deixar.
De um instante pra outro, uma corrente de ar decidiu entrar pela janela, trazendo consigo aroma das flores do jardim de Clarice, da hortelã que Marcelo plantara, do bolo de chocolate sendo feito na cozinha, além de ter carregado algumas folhas secas para o parapeito da janela. Olhando aquelas folhas sendo carregadas pelo vento, sentiu um impulso de misturar-se a elas, de se tornar também uma folha seca, cujo rumo é decidido apenas pelo vento; sentiu um impulso de fundir-se àquele vazio, àquela ausência. Fechou os olhos. Parece que, ao fazê-lo, perdeu um pouco da sensibilidade ao sol, à luz, e sua pele parou de arder. A luz, as folhas, a hortelã, a lavanda. A calda do bolo de chocolate. Murmurava palavras incompreensíveis para si mesma, ou talvez para o vento levar aos ouvidos de alguém.

"Clarice, você está me ouvindo?". Foi trazida de volta à real realidade pelas mãos de Marcelo em seus ombros. "Estou falando com você há certo tempo, sabia?". Ela tinha o olhar confuso, mas balançou a cabeça. "Você nem se vestiu ainda, Clarice. Vamos, eu a ajudo."
"Marcelo...", sua voz saiu como um sussurro. Ela sentiu que teve de fazer um esforço muito grande para sair de seu próprio mundo e conseguir pronunciar o nome de seu marido. Foi como se ela tivesse de emergir muitos metros para chegar à superfície da água, onde se encontra a realidade. Ele parou e encarou-a, incentivando-a a continuar falando. Clarice permaneceu ali, de boca aberta, sem saber por que razão abrira a boca - ela sabia que queria falar com ele, mas não sabia sobre o quê, nem por quê. "Eu... eu queria..."
"Sim, querida?". Essa palavra a desestruturou completamente. Sentiu-se muito culpada, por qualquer motivo, e abaixou a cabeça, para encarar os próprios pés.
"...queria agradecer-lhe pelas flores. Sei que sabe que são minhas preferidas. Obrigada pela demonstração de atenção.". E tentou sorrir.
Ele retribuiu a ação, beijou-lhe a testa e abriu o armário. "É seu aniversário de trinta e cinco anos, você precisa estar bonita. E não se preocupe, Clara já está pronta."
Passos suaves e ritmados que andavam pelo corredor pararam à porta. "Chamou, papai? Ouvi meu nome.". A menina tinha grandes olhos castanhos amendoados. "Está melhor, mamãe? Fiz um desenho pra você."
Ao olhar para aquela menina, aquele projeto de indivíduo, aquele pedaço dela mesma, a vontade de fundir-se às folhas esvaiu-se, e tudo o que Clarice queria era fazê-la feliz, fazê-la tão feliz que ela nunca precisaria ter lavanda plantada no jardim. Mas não se sentia capaz pra fazê-lo. Na verdade, sabia que não era capaz. Nem sua filha, nem seu marido saberiam o que é felicidade estando a seu lado. Se eles fossem livres, talvez pudessem aproveitar a luz do sol e o cheiro da lavanda.

Mas essa dor de cabeça...

..continua

Um comentário:

Paolla Muglia disse...

Espero a continuação =)