sábado, 19 de janeiro de 2013

não se afogue, clarice

(continuação)

"Tia, você não gostou?"
Clarice abriu os olhos e viu que a menina ainda esperava sua palavra final. "Mas é claro que eu gostei, pequena. Elas me trazem boas memórias.". Sorriu para Alice, que enrubesceu e se deu por satisfeita.
"Eu também lhe trouxe algo". Dessa vez foi Carolina, sua irmã, que se pronunciou, entregando a Clarice uma caixa, que a abriu. Dentro, havia uma caneta tinteiro e muitas folhas de um papel muito bonito. Olhou para a irmã, intrigada. "Sempre achei que você escrevia muito bem. Sei que você parou para se dedicar à música, mas agora, bem...", e então ela deu uma pausa para escolher as palavras com cuidado: "agora você tem tempo.". Clarice sorriu para ela. Escrever. Sim, era uma ideia muito interessante.
"Carolina!"
Do outro lado da sala, a mãe levantou-se bruscamente da poltrona em que estava sentada. "Você está louca? Dando essas ideias pra sua irmã, que já está tão frágil?"
"Como, mãe?"
"Se ela está assim letárgica sem ter de fazer esforço mental nenhum, imagine se tiver que começar a pensar, para escrever! Você está louca!"
Essa última frase ecoou pela sala. E, após um curto silêncio, várias vozes começaram a falar ao mesmo tempo.
"Mãe!"
"Diana, é de sua filha que você está falando!"
"Clarice precisa de um tempo para se recuperar!"
"Minha esposa não está letárgica, ela está traumatizada!"
"Eu não estou fazendo esforço mental nenhum?". A voz fraca de Clarice estava forte e clara, apesar de baixa, quase um sussurro. "Você acha que eu não penso, mamãe? Bem, então vou te contar como tem sido minha vida há seis meses. Todos os dias eu acordo frustrada por ainda estar viva. Todos os dias eu sinto o cheiro de hortelã entrando pela minha casa e me lembro que ela foi plantada no maldito dia que estragou minha vida toda. Todos os dias eu sinto uma dor de cabeça que me diz claramente que eu não estou nem um pouco feliz. Do momento em que eu abro os olhos até o momento em que eu os fecho, sinto-me culpada por não ser a mãe que minha filha merece ou a esposa que meu marido merece. Todos os dias, mas todos os dias mesmo, eu me sinto completamente inútil por ter perdido a habilidade de fazer a única coisa que eu fazia sozinha e que ainda fazia meus olhos brilharem, que ainda me fazia esquecer de quem eu realmente era. Hoje me sinto completamente vazia e ainda não sei com o que preencher essa ausência de não sei o quê. Mas eu não posso trabalhar fora de casa, pois eu mal escuto meus próprios pensamentos, como vou seguir ordens? Já tentei me matar, mamãe. Duas vezes nos últimos seis meses. Nessas ocasiões, esse vazio tomou conta de mim de forma tão ntensa que eu não via nenhuma outra solução além de me entregar completamente a ele. Mas se você acha que eu estive assim só nesses últimos meses, engana-se. Engana-se porque eu a enganei, porque eu enganei a todos, porque eu fiz todos acreditarem que eu estava feliz. E eu conseguia fingir muito bem, durante um tempo consegui até me enganar, mas no dia em que eu subi no palco e vi meu marido e minha filha olhando para mim com tanta admiração, tanto orgulho, tanta expectativa, tanto amor, que eu não consegui mais suportar o peso da mentira e sucumbi. Eu... sucumbi. Desde aquele dia, sinto que parei de me afogar em minha própria culpa por esconder minha infelicidade. Agora eu só nado nela. Às vezes consigo até boiar nela. Mas ela ainda está aqui. A culpa, a miséria, o sofrimento. A única diferença é que agora vocês conseguem ver minha verdadeira essência porque eu não tenho mais forças para escondê-la. Então, mamãe, prazer em conhecê-la. Eu sou sua filha. E eu penso. Até mais do que o necessário."
Carolina e Fernanda a encaravam com piedade. "Parem de me olhar assim. Odeio que sintam pena de mim.".
Marcelo a olhava completamente derrotado. Sentia que havia falhado com ela em todos os sentidos. "Marcelo, não é sua culpa. Eu sou assim. Mas posso garantir-lhe que as experiências que eu tive de felicidade foram ao seu lado. Por favor, não se culpe."
Rafael andou até Clarice e segurou-lhe as mãos. "Por favor", ele dizia cada palavra entre engolidas em seco, "por favor, não nos deixe. Eu não sei o que eu faria sem você. Por favor, Clarice, você é a pessoa mais forte que eu conheço. Se você desistir..."
Ela acariciou o rosto jovem do irmão. "Você é muito mais forte do que eu. Quem de nós teve que ver a própria irmã ter um surto psicótico?". Então andou até Carolina. "Eu adorei a ideia de escrever. De verdade. Talvez fazê-lo seja como usar um colete salva-vidas no meu mar de sofrimento. Muito obrigada por ter tido a coragem de me dar isto", disse, batucando com seus dedos na caixa.

"Quanto a você", ela disse, abaixando-se para ficar na mesma altura de Alice, "muito obrigada por me fazer acordar."

Ela saiu andando da sala, ignorando o protesto em forma de silêncio que se formava a cada passo que ela dava. Atravessou a cozinha e saiu pela porta dos fundos. Devia ser pouco depois do meio-dia. A claridade já não a incomodava mais. Na verdade, pela primeira vez em muito tempo, Clarice se sentiu abraçada pelo sol. Estava se sentindo meio tonta, seus sentidos estavam mais atinados, era realmente como se ela tivesse acordado de um sono muito longo. Deitou-se na grama. O cheiro da hortelã ainda estava ali - mas agora era agradável. Era uma sensação muito boa. Não que ela estivesse feliz. Mas também não estava miserável. Seu coração só não estava mais tão apertado. Não doía mais pra respirar. Verbalizar suas sensações tinha ajudado a colocá-las em ordem. Seus pensamentos não mais fluíam sem curso nenhum - agora ela sabia falar de onde todos vinham e aonde iam.
Respirou fundo.
Ela conseguiria dormir ali.
Estava tudo tão quieto. Será que foram embora? Clarice não ouvia nada além do vento, de alguns pássaros e do bater de asas de uma borboleta que passava por ali. Isso era possível? Quero dizer, ouvir as asas de uma borboleta. Acho que não. Devia estar enlouquecendo. Mais? Difícil. Ah, diabos, qual era o problema de se ouvir as asas de uma borboleta? Virou-se de lado - agora ela encarava a árvore em que o balanço de sua filha estava pendurado. As folhas mal se mexiam com o vento. Era uma árvore grande - estava ali, de pé, mesmo após tantas tempestades, raios, ventanias. Essa árvore, sim, devia servir de modelo às pessos. Clarice, não diga besteira, como uma árvore serviria de exemplo a humanos? Começou a rir sozinha. E, rindo sozinha, não percebeu Marcelo se aproximando. Está tudo bem, Clarice? Precisa de ajuda, Clarice? Está frio, Clarice. Vá dormir, Clarice. Por que está rindo, Clarice? Você está doida, querida! Ela se sentou.
"Eu não estou doida e não preciso de ajuda."
"Não ia oferecer ajuda. Você claramente não precisa de ajuda. Nunca a vi ser tão verdadeira. E, na verdade, ia oferecer uma xícara de café. Quer? Reza a lenda que escritores fazem bom proveito de café". Clarice levantou a cabeça para encará-lo. "Muito bem. Que tomemos café."

(continua)

2 comentários:

Anônimo disse...

Eba eba eba! Você escreveu mais! Você é incrível, garota!

Anônimo disse...

"Verbalizar suas sensações tinha ajudado a colocá-las em ordem." - uma verdade inquestionável.

Muito bom seu texto, genial. Parabéns!!!