quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

rosas amarelas

Muitas vezes sua própria casa lhe parecia estranha, desconhecida. Agora, mesmo, ela estava sendo guiada pelas mãos como uma criança por seu marido - pelo corredor, descendo as escadas, virando aqui e ali, até chegar à sala de visitas.
Todos estavam ali. Bem, não todos literalmente - apenas os que não haviam renegado Clarice após seu colapso. Seus pais, seus irmão e irmã, sobrinhos e sobrinhas, até a irmã de Marcelo (e seu marido, e sua filha)... todos ali, para vê-la, para acompanhar sua dita recuperação, para mostrar-lhe que se importavam com ela...
Sem ela os ter chamado.
A última coisa que Clarice queria era que essas pessoas, que ela tanto amava, a vissem daquele jeito. Ela sentia que o que motivava alguns a ainda visitá-la era pena; outros, saudades de como ela um dia fora. Mas ninguém queria vê-la simplesmente por vê-la. E isso machucava muito.

Um violino.

Passaram por um violino.

Clarice esticou a mão para a frente, esticou os dedos, como se numa tentativa de alcançá-lo, mas ele estava longe - ou será que não estava, num primeiro momento, mas afastou-se dela? Com o braço ainda esticado, começou a dedilhar algumas músicas. Ela podia sentir os calos em seus dedos, podia lembrar-se da sensação de apertar os dedos contra as cordas, quase conseguia ver a música que dançava ao seu redor, em sua memória. Que saudades de tocar violino. Que saudades da música. Não se lembrava da última vez que havia ido a um concerto, a uma ópera. Sentia falta disso. Sentia falta da música. A mesma música que um dia deu-lhe tudo, e que num outro tirou-lhe tudo.

"Clarice, por favor, olhe no rosto das pessoas quando elas falam com você, sim?", ouviu seu marido sussurrar-lhe ao pé do ouvido, forçando-a a voltar ao presente. Ela olhou-o, depois olhou ao redor, para localizar a quem ela deveria estar escutando. Pela expressão mista de expectativa e de decepção, devia ser Rafael.
"Desculpe por não ter prestado atenção, Rafael. Por favor, repita.", Clarice disse, a seu irmão, de forma um tanto mecânica.
"Eu estava dizendo que você parecia melhor, pequena. E repito o que disse, porque da última vez que a vi sequer ouvi sua voz."
"Sim, eu me lembro... eu me lembro. Você nos visitou na semana em que Marcelo plantou hortelã no quintal..."
Ninguém sabia ao certo como responder a essa constatação. Talvez por não entenderem o que era a hortelã para Clarice.
"Clarice, eu lhe trouxe um presente!", disse, por fim, Fernanda, a irmã de Marcelo. Ela pegou um embrulho retangular e colocou-o nas mãos de Clarice. "Espero que você se entenda melhor ao terminar de ler. E, quem sabe, talvez, mude um pouco a visão que você tem da vida."
Clarice olhou do embrulho para Fernanda, e de volta para o embrulho. Abriu-o como quem manipula um cristal e surpreendeu-se ao ver que o presente era um livro. Hermann Hesse. Ela conhecia o autor - ele recebera o prêmio Nobel de literatura. Devia fazer alguns meses desde a última vez que lera um livro. A última vez fora, bem, antes... daquilo acontecer.
"É normal. Ela às vezes não parece estar na nossa realidade. Mas é só chamá-la de volta que fica tudo bem."
"Eu estou bem aqui ainda, Marcelo."
"Minha filha também tem algo para você, querida.". Fernanda olhou para sua filha, encorajando-a. "Vamos, Alice, mostre para sua tia o que você trouxe."
A menina andou timidamente até Clarice e entregou-lhe um buquê de rosas amarelas. "Elas me lembram você.". Clarice pegou-o das mãos da menina, que não devia ter mais de seis anos; levou-o ao rosto para sentir-lhe o perfume...

...era um dia muito bonito. Ensolarado, colorido, quente. Ela desceu as escadas correndo ao sentir cheiro de calda de chocolate.
"Ah, Beta, vou precisar mesmo de um bolo quando voltar para casa!", disse, rodeando a cozinheira e dando-lhe um beijo na bochecha. "Muito obrigada!". A cozinheira riu e mandou Clarice sair de sua cozinha, pois ela estava atrapalhando. "Se você ficar aqui, a massa não cresce."
Ela continuou andando pela casa, saiu pela porta dos fundos, que dava para o quintal, e viu Marcelo sentado na grama, mexendo com terra. Sua filha, Giovana, brincava no balanço.
"E o que o senhor está fazendo?", ela disse, sentando-se ao lado dele. "Que cheiro maravilhoso..."
"Hortelã. Todos os dias de verão vamos acordar com esse cheiro entrando pela janela. Fui ao mercado comprar as sementes e essas mudas enquanto você estava dormindo. Era pra ser uma surpresa, eu não esperava que você fosse acordar tão cedo.
"Cedo? São dez horas!", ela disse, beijando-lhe a testa e levantando-se para ir de encontro à filha. "E você, o que está fazendo aqui, mocinha?"
"Estava balançando, mamãe. Na verdade, eu estava quase voando.". A menina perdeu impulso e desceu do balanço, abraçando a mãe.
"É uma sensação deliciosa, não é, minha pequena? Quase voar."
"Você já voou, mamãe?"
"Ah, já! Sempre que a mamãe ouve música ela se sente como se estivesse voando. Quando gostamos muito de alguma coisa nos sentimos assim. Quando eu conheci o papai eu me senti assim. Quando você nasceu eu me senti assim."
"O que tem o papai?", Marcelo disse, aparecendo atrás dela. "Para você, querida. Para sua apresentação de hoje.", dizendo isso, entregou-lhe um buquê de rosas amarelas. "Eu sei que elas trazem sorte".
"Com certeza, meu amor.", e Clarice beijou os lábios do marido. "Vamos, precisamos comer alguma coisa, pois saímos em uma hora.". Giovana pegou sua mão. Marcelo colocou o braço em torno da cintura dela. Clarice fechou os olhos para ter um registro disso para sempre.
Era como se ela soubesse que, duas horas depois, ela estaria deitada inconsciente no palco do maior teatro da capital.

(continua)

2 comentários:

Anônimo disse...

Sensacional!

marina disse...

vc sofrer bullying eh uma das coisas q eu menos entendo na vida