domingo, 27 de janeiro de 2013

chuva

(continuação)

Ajudada pelo marido, Clarice se levantou e andou até a cozinha para tomarem um café. De lá, ela podia ouvir as pessoas conversando em voz baixa na sala. Sobressaíam-se as vozes de Carolina e Fernanda, mas Rafael e sua mãe também pronunciavam-se. Clarice suspirou. Todos estavam lá, discutindo sua vida, decidindo o que era melhor pra ela, mas é claro que ela mesma nunca era consultada. Sentou-se. Olhou para o fogão.

"Marcelo, onde está a Beta?"

Ele a olhou confuso. "Querida, você não se lembra? Ela se demitiu. Foi tentar formação em enfermaria, esqueceu?"

"Não me lembro de nada disso."
Marcelo respirou fundo e encarou seus pés, desconfortável. "Acontece que um dia você estava especialmente... bem... afetada, e Beta disse que não aguentava mais vê-la daquele jeito. Disse que queria ser capaz de ajudar. Então foi tentar fazer faculdade de enfermagem, para ajudar as pessoas. É isso."

Clarice bebericou seu café, desviou seus olhos do fogão e fixou-os nos do marido. "E quanto à Clara?"
"O que tem ela?"
"Você sabe, Marcelo. Na escola. Quero dizer, não é possível que a notícia de meu surto não se espalhou."
Ele passou a mão na testa, ainda mais desconfortável. Era difícil expor a verdade, assim, nua e crua, sobre todas as consequências do colapso de sua esposa. Ele não queria que ela se sentisse culpada, mas também sabia que, sendo quem era, ela precisava saber de tudo. "Bom, querida, algumas mães ficaram sabendo, então seus filhos começaram a mexer com nossa filha... uma ou outra professora tentou conter a sala, mas outras eram partidárias de que você mereceu, de que você precisava de freios. Então eu a tirei daquela escola."
Ela tentava conter as lágrimas que afloravam ao pensar em tudo por que sua filha tinha passado. Ela certamente não merecia nada daquilo. Mas pessoas são cruéis, crianças são cruéis. Tomou mais um gole do café. "Então onde ela está estudando agora?"
"Eu descobri que um colega seu, do conservatório, era professor de música em uma escola não tão conhecida. Fui conhecê-la e gostei. Aparentemente, esse seu colega impediu que os fatos sobre você se espalhassem e fez uma dinâmica muito interessante com as crianças sobre fenômenos mentais, psicológicos. Foi bem interessante, e de grande ajuda. E Clara está feliz, acima de tudo. Só tem um problema."
Clarice olhou para fora e viu sua filha correndo até o balanço na árvore e sentando-se. Ela tinha uma rosa amarela na mão.
"Ela não suporta ouvir violinos, Clarice. Na verdade, até orquestras a incomodam. Acho que, na cabeça dela, a música é culpada pelo que aconteceu com você."
"Ah, a culpa não é da música. É minha. Eu gostaria de dizer que não, mas... se não fosse minha, de quem seria?". Descansou sua xícara na mesa e levantou-se, indo em direção à sala. Parou na porta que dividia os dois ambientes. "Vem comigo?"
"Eu estou logo ao seu lado."
Abriu a porta.

Todos pararam de falar. Carolina, que estava sentada, levantou-se num salto e foi correndo até sua irmã. "Eu não queria que tudo isso acontecesse, irmã. Eu só queria presentear-lhe, e sempre achei que você levasse jeito pra escrever, e..."
Clarice interrompeu-a, segurando-a pelos ombros. "Carol, você fez certo."
"Mas você está diferente, e eu não sei se isso é bom ou ruim, e..."
"Carol, isso é bom, muito bom."

"Mas..."
"Carol, eu precisava disso. Precisava do seu presente, e do livro de Fernanda, e das flores de Alice. Eu precisava de tudo isso pra me lembrar de quem eu sou, de quem eu fui.". Ela apertou as mãos em seus ombros, depois a abraçou. "Vai ficar tudo bem. Muito obrigada."

Então, dirigindo-se a todos da sala, aumentou a voz. "Obrigada por terem vindo. Obrigada por hoje. Obrigada, Carol, Alice e Fernanda, por terem fornecido o combustível, e mamãe, por ter fornecido a faísca que proporcionaram a explosão interna que me acordou. Agradeço por mim e por minha família.". Cumprimentou todos com um abaixar de cabeça, foi até Alice e beijou-a na testa, pegou sua filha pela mão e retirou-se.
Chovia.

Agora Clarice dirigia-se à porta da frente. "Menina, seu pai me contou que você não gosta do som do violino."
Clara fez uma careta. "Não gosto, mamãe. Me incomoda. Acho que sinto dor."
"Bom, nós vamos mudar isso, não vamos? Porque você adorava quando mamãe tocava violino, e eu talvez volte a tocar um dia. Nós precisamos de música, criança. E não se preocupe, mamãe não vai desmaiar toda vez que chegar perto de um instrumento."
Clara balançou a cabeça.

"Por falar nisso, você tem vontade de aprender a tocar alguma coisa?"
A menina desviou os olhos, olhando para frente. "Você vai ficar brava se eu não quiser tocar violino?"
Clarice abaixou-se para ficar na altura na menina. "Claro que não. Você tocará o que quiser, quando quiser. A escolha é só sua."

Ela sorriu. "Eu queria saber tocar piano." Clarice devolveu o sorriso e levantou-se. Saíram pela porta da frente.

"Clarice?", a voz de Marcelo interrompeu seu pensamento. "O que você vai fazer agora?"
Ela parou. Não estava pensando, na verdade um grande vazio apossava-se de sua mente; agora que tinha se libertado de antigos pensamentos, sua cabeça tinha espaço livre pra ocupá-lo como bem entendesse. "Eu não sei, e gosto disso. Vou fazer o que eu quiser. E, agora, eu quero andar na chuva.". Ela soltou a mão de sua filha, soltou a mão de seu marido, e saiu pela porta da frente.

Chovia, mas também fazia sol, e Clarice andou por sua rua com seu melhor vestido de festa.

-fim-

3 comentários:

Anônimo disse...

Ler seus textos é como comer tubinhos cítricos, garota! É azedo, mas há um toque de doçura e não é possível, uma vez que comece, parar.

Anônimo disse...

Oi =)

Vi que vc passou em Direito na USP. Parabéns! Vai fazer o curso lá mesmo?

Anônimo disse...

Ei, garota dos tubinhos cítricos! Parabéns pelas tuas conquistas! Você vai longe! Escreva mais quando tiver tempo, porque és muito boa.