quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

cry me a river

(pra ser lido ao som desta música)

Now you say you're lonely; you cry the whole night through

Vitória olhava para aquele corpo inerte do outro lado do cômodo. Não sentia remorso, muito menos culpa. Sentia pena. Pena dele, do que ele tinha se tornado, e pena dela, e do que ela tinha permitido que fizessem com ela. Bufou. Abriu a porta de correr que dava para a varanda; o quarto começava a ficar sufocante. Pegou o maço de cigarros e o celular e foi se sentar na varanda. Colocou uma seleção de jazz para tocar e, contrariando as expectativas do leitor, atirou o maço pela tela de proteção da varanda. Observou enquanto ele caía por 15 andares. Ela já não mais precisaria dele - não havia mais ansiedade para ser tratada com vícios.

Well, you can cry me a river, cry me a river... I cried a river over you

Curioso. Poucos  minutos antes, ele chorava e repetia as mesmas palavras que disse quando se conheceram.
"Eu vou fazer isso, sabe. Ninguém pode me impedir. Nem você."
Na situação do primeiro encontro, Vitória trabalhava como paramédica e impedira que ele cometesse suicídio, por overdose de antidepressivos, após um surto psicótico. Ou seja, tendo como base a forma como se conheceram, era de se esperar que Vitória tivesse entendido que o indivíduo era absolutamente instável e maníaco, mas não, leitor. Ele apareceu no hospital em que ela trabalhava, duas semanas depois, com flores em uma mão e um documento atestando sua plena capacidade mental em outra. Agradeceu à moça que salvou sua vida por tê-lo feito e a convidou para jantar. Certo, ela disse, que vamos comer? Qualquer coisa de sua preferência que não leve antidepressivos na receita, ele respondeu, e assim começou a (in?)felizmente curta história conturbada que acabou com um corpo inerte num apartamento de cobertura do Rio de Janeiro.
De mentalmente capaz ele não tinha nem nunca teve nada. Sempre surtando, sempre em crise, sempre recusando ajuda, sempre jogando a responsabilidade pelas lágrimas de Vitória sobre sua condição "complicada". E ela tentava entender, tentava acreditar. Ela era formada em medicina e lembrava-se de ter visitado alguns hospitais psiquiátricos, sabia como era triste a situação de pacientes "complicados". Por isso tentava ser complacente. Por isso derramou rios de lágrimas por ele.

Now you say you're sorry for bein' so untrue... well, you can cry me a river, cry me a river... I cried a river over you

Entre vícios e traições, mentiras e desculpas, rosas e chocolates, a relação dos dois se desenvolvia. Nos primeiros meses, ela foi compreensiva. Depois ficou apreensiva. Ele começou a ficar violento. Vitória temia que, se ela pusesse um fim à relação deles, ele iria atrás dela atrás de explicações e voltaria pra casa com um mandado de prisão por homicídio. Depois tornou-se apática. Tinha seus próprios problemas no trabalho e no mestrado e cansou-se de ser a babá de alguém. E foi então que ele, de violento, regrediu; começou a ficar dependente demais. Vivia doente, para que ela dele cuidasse - Vitória não sabe dizer quando a linha entre fingimento e sintomas reais, causados por ele mesmo, foi cruzada. No fundo, ela não se importava. Talvez esse fosse o jeito doido dele de pedir desculpas pelo comportamento antigo, talvez fosse sua forma de mostrar que queria atenção. Tudo de forma bem doentia. Mas nunca verbalizou um sentimento sequer. Na verdade, a primeira e penúltima vez que Vitória o viu chorar foi quando ele estava prestes a se matar.
E a última foi quando ele de fato o fez.
Céus, qual era o motivo de tantas buzinas às três horas da manhã?!

You drove me (nearly drove me) out of my head, while you never shed a tear

(continua)

2 comentários:

Victoria Mazza disse...

Adorei, Bruckz! :)

ffa disse...

Ética profissional e pessoal entram em cena...
Liberdade versus responsabilidade com doentes mentais...
Anseio pelos próximos capítulos!