quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

now you say you're sorry

O delegado abriu a porta da sala de interrogatório. Vitória podia ver seu vulto, com os ombros pesados e os punhos cerrados.

"Eu tinha de ver com meus próprios olhos. O que você está fazendo aqui, Vitória? Como foi deixar isso acontecer?"
"O quê, Paulo? Ele quis se matar. A vida é dele, quem sou eu pra impedir?"
"Você é uma médica, isso que você é! Agora vai ter de enfrentar uma acusação de homicídio doloso, porque você foi negligente!"
"Se eu não fosse médica, eu estaria passando por isso?"
"Provavelmente não"
"Por que não? Qualquer um sabe que cicuta é veneno, e que veneno mata."
"Mas você é médica e podia - aliás, devia ter prestado socorro."
"Prestar socorro? Ele não pediu socorro!"
"Vítimas de acidentes também não pedem socorro"
"Vítimas de acidente não são suicidas, mentalmente instáveis, totalmente doentes!"
"Olha, Vitória, a questão é que é seu dever prestar ajuda a quem visivelmente se encontra na iminência da morte."
"Eu acho que é meu dever ajudar a quem pediu ajuda, ou a quem está à beira da morte por culpa de outra pessoa que não elas mesmas. Não é meu dever impedir um suicida de realizar seu desejo."
"Se ele era totalmente doente, então ele não estava em pleno juízo para tomar decisões, logo, não era responsável pelas consequências de seus atos. Sendo a consequência, bem, a morte, e a responsabilidade não é dele, então de quem é?
"Não sei, de deus?, por tê-lo colocado justo no meu caminho?"
"Sua, Vitória. Sua. Muito sua, porque você sabia de ambas a condição psicológica do homem e suas intenções quando ele foi à sua casa. Então eu  não diria que você foi apenas negligente... você foi egoísta. Desumana."

Vitória poderia ter saído da cadeira num pulo e parado no pescoço do delegado perante aquela afirmação, mas decidiu manter-se calma, no aparente controle da situação. Afinal, não se combate ignorância com ignorância.

"Não, Paulo. O que aconteceu foi que eu fiz um favor a mim, a ele, à humanidade. Ele estava ficando mais louco do que já era e estava me deixando louca também. E se o suicídio foi calculado ou foi puro impulso não faz diferença - ele não precisava da ajuda da minha especialidade médica, mas sim de um psiquiatra. Não havia nada que eu pudesse fazer. Se eu o tivesse impedido de tomar cicuta, ele provavelmente teria tomado alguma atitude agressiva para comigo, começaria um solilóquio interminável, eu o expulsaria da minha casa, ele ficaria atordoado com minha atitude e acabaria sendo atropelado saindo do meu prédio."
"Vitória, nada disso importa. Não existe 'se' em um julgamento. Não existe 'se' quando se trata de morte. O fato é que um homem se matou na sua frente, no seu apartamento, no apartamento de uma médica, e sua falta de interferência equivale ao consentimento e, portanto, à negligência."
"Se eu tivesse interferido e o impedido de se matar, eu estaria cerceando sua liberdade."
"O quê?"
"Sim. Pois o corpo era dele e eu não tinha o direito de dizer o que ele deveria ou não deveria fazer."
"Mas ele era doente mental, Vitória! O corpo não era mais dele, por assim dizer!"
"Então era de quem? Quem deveria tomar as decisões por ele, se ele mesmo não podia fazê-lo?!"
"Eu não sei, Vitória. Eu não sei. E não é minha obrigação saber. Eu só sei, e você também deveria aceitar esse fato, que você não agiu de acordo com seus deveres, e, portanto, vai ser julgada por isso."
"E eu vou refutar isso até o fim, porque ainda acho que a vida é dele e ele faz o que quiser com ela."
"Você está comprando briga"
"Pago à vista"

Paulo, o delegado, saiu da sala batendo a porta atrás de si. Vitória, sabendo que estava sendo observada através daquele espelho, tentava, com todas as fibras de seu ser, conter o impulso de gritar frustração perante aquilo tudo. Ela queria gritar que o canalha merecia morrer, que tudo seria melhor agora sem ele, que agora ela poderia viver de verdade, sem um encosto, sem um fardo, sem um medo constante; mas conteve-se. Respirou fundo, porque era a única coisa que ela podia fazer. Respirar.
Por fim, levantou-se, bateu com a ponta dos dedos duas vezes no espelho, "tenho direito a voltar pra casa enquanto espero, bem, por tudo?"
A porta foi aberta, "tem sim, pode vir comigo".

Entrou na viatura da polícia e foi conduzida até seu apartamento. Não havia mais viatura nenhuma lá, eles provavelmente já tinham levado o corpo embora. Seis horas da manhã, o sol estava nascendo - isso deveria significar alguma coisa? Não, Vitória estava cansada de tentar achar significado pra tudo. Melhor tentar dormir, hoje era dia de plantão.

...cry me a river, cry me a river, I cried a river over you

- FIM -

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